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01/11/25

NO CORRER DOS DIAS

Marques da Silva




Coimbra. O primeiro momento do dia, volta a ser a estação. Cativam-me os momentos da partida, mais do que os de chegada. Quando nos afastamos e observamos com cuidado, podemos idealizar o que cada um deixa transparecer ou pretende esconder. Na chegada, há cansaço, por vezes irritação, mas quando iniciamos uma viagem, sente-se ansiedade, a vontade da descoberta, a interrogação do que encontraremos no destino. Alguns, acomodam-se num pequeno espaço, outros espreitam o relógio ou o espaço de informação e outros ainda, caminham com ar pensativo. Num intervalo desta observação, espreito os títulos dos jornais do dia e ao folhear um deles, deparo-me com esta pérola, “Se conseguir negociar uma coligação com maioria no Parlamento (…) poderá ser o mais novo de sempre a ocupar o cargo de primeiro-ministro e o primeiro assumidamente homossexual.” Presume-se que o sexo deve fazer parte do Curriculum Vitae do provável primeiro-ministro dos Países Baixos. O Público insiste em erguer muros onde se abriam portas. Quase silenciosamente, o comboio aproxima-se lançando um som de buzina curto, mas estridente. Oitenta e sete toneladas de metal deslizam nos carris até se deter. O meu olhar ergue-se por sobre a multidão que procura as portas na expectativa de que me pudesses surpreender com a tua companhia. Foi apenas um sonho, uma ilusão. Viajamos agora nas planícies desta Beira Litoral que faz a ligação entre o mar e o interior montanhoso. Enquanto a paisagem passa pelo nosso olhar em sentido oposto, deixamos que o pensamento examine o mundo que nos rodeia neste tempo atropelado por malfeitorias e acções devastadoras sobre os colectivos humanos, das quais nenhum espaço terreno parece poder escapar, ou até iludir. No Auschwitz palestiniano, o sionismo judeu continua a matar. Existe uma diferença qualitativa entre o nazismo e o sionismo judeu. Ao nazismo, a humanidade conseguiu parar, julgar e condenar, mas o sionismo judeu, é que submete a humanidade a uma derrota humilhante. Em nome de loucuras bíblicas que só existem na cabeça de doentes mentais, um Estado ergueu-se à bomba e sobre acções criminosas constantes e, ao longo de oitenta anos, têm obrigado a humanidade a pedir desculpa quando num lapso de coragem os critica. Sem a Nuremberga do sionismo judeu, temos de aceitar que a humanidade ultrapassará uma linha sem retorno. Esta locomotiva que impulsiona este comboio, entrou em marcha de retenção e uma voz apressada avisa que vamos entrar na estação de Coimbra B. É o efeito do hábito, pois já não existe Coimbra A. É um autocarro que nos leva por estes dias até ao centro da cidade, ou até Coimbra A, se assim quisermos recordar o passado recente. É tempo de caminhar na procura do que aqui me trouxe, o passado, esse tempo vivido, esse espaço pretérito tão cheio de presentes. A velha cidade romana de Aeminium. Onde o império necessitava de atravessar cursos de água, nascia uma cidade ou um lugar habitado. Depois dos Suevos chegaram os muçulmanos e os árabes e Aeminium  passou a Qulumbriya. No século XI por fim, Coimbra passou para a posse da realeza leonesa, não deixando, todavia, de ser cercada mais tarde pelas hostes árabes. Resistiram a Condessa Portucalense, viúva que era de D. Henrique e mãe de Afonso que virá a ser rei.  O meu pensamento ganha asas enquanto caminho pela airosa avenida da margem direita deste Mondego e os meus passos dirigem-se para a antiga urbe que olhada do outro lado, o seu casario se assemelha a velhinha cidade de onde provimos. Caminho sobre as pedras centenárias desta solidão que me embala, me conduz entre as paredes das ruas estreitas do silêncio. Há em cada um de nós o desejo de voar, olhar de cima o chão que pisamos. Percorremos o tempo de vida, o nosso, e o daqueles que nos trouxeram aqui, e não resistimos a desenhar os contornos das avenidas por onde passarão os que ainda não chegaram. Tudo é História, tudo é vida entre o nascimento e a viagem que nos levará pelo espaço da eternidade. Por agora caminho apenas e usufruo das alas deste silêncio como se fosse a tua companhia e os meus braços prendem-te para que não fujas da minha memória e me guies nos caminhos infinitos do amor pelo passado, esse pretérito que hoje visito, onde cavalgaram as hostes árabes dos almorávidas. No acabar desta estreita rua, um largo se abre, e altaneira, olhando de cima, a Sé Velha ou Catedral de Santa Maria de Coimbra. Uma frontaria austera, castelã e românica faz-nos sentir temor, como se pretendesse representar, o poder de Deus sobre a pequenez humana. A nave central aberta em arcos laterais suportados por colunas de boa dimensão, na sua singeleza, só é abafada pelo barroco do altar, essa ousadia dourada a tentar sobrepor-se à beleza da pedra e do mármore. Mas é na pulcritude quase gótica do claustro que o meu olhar se deliquesce em descanso. O pensamento voa na procura de sanar o que me surge como uma contradição. Afonso, derrota as hostes da mãe e da nobreza galega dos Trava em 1128 e tendo já como objectivo assumir-se como rei de um reino que não tinha, rumou à Coimbra moçárabe, onde ficava o que hoje chamaríamos a fronteira entre os cristãos e os muçulmanos. A construção da catedral terá começado após a vitória na batalha de Ourique, a qual, em boa verdade, não sabemos onde ocorreu e terá terminado pelos finais do século XII. Assim sendo, como explicar que numa das paredes laterais aparece gravada na pedra uma inscrição em árabe, quando estes já não voltaram a entrar na cidade desde o século XI. Terão sido os moçárabes que gravaram naquela pedraria “Escrevi [isto] como um registo permanente do meu sofrimento. A minha mão perecerá um dia, mas a grandeza permanecerá”? Procuro-te no pensamento enquanto desço pela Rua dos Coutinhos para alcançar o Mosteiro de Santa Cruz. A tua presença certamente me ajudaria neste nó górdio da humanidade, a procurar os caminhos escondidos desta Coimbra onde Afonso escolheu viver para melhor guerrear, sabendo que sem a temperança de guerreiro, de um combatente da fé, nunca seria rei. Os Agostinhos Regrantes muito o ajudaram com as palavras de Deus e em compensação, o futuro rei que já agia como tal, ajudou-os a erguer este mosteiro. Já depois da sua morte, os crúzios haveriam de legitimar os seus actos com o mito da batalha de Ourique e o aparecimento de Deus na véspera dessa liça guerreira, não foi um acaso. Pela pena dos Crúzios, Deus não lhe apareceu apenas para o galvanizar, mas antes para lhe impor o combate como uma vontade Dele. Já não dependia de o futuro rei desejar ou não o combate, este estava-lhe imposto pela vontade divina. A História, quantas vezes, se traça pela pena escrevendo movida pela mão humana. Sentada na esplanada do Café Santa Cruz, aprecio os raios luminosos do sol, espargindo-se nas janelas altas dos prédios, derretendo-se nessas cores douradas de despedida. Saboreio um crúzio, não um dos frades, mas antes algo delicioso que nos deixaram, enquanto escrevo o postal que aqui te deixo. A minha viagem prossegue.  

 

 

1 comentário:

maria jose disse...

Nao te disse. Mas continuo a gostar muito dos teus postais, destes que que escreves a alguém imaginário. Sempre muito bem escrito e simples de se entender. E aprendo sempre mais. Obrigada.

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