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01/12/24

NO CORRER DOS DIAS

Marques da Silva


Giuseppe Tomasi di Lampedusa (1896-1957)


Santa Margherita di Belice. Final do Outono. Ao longo da vida, por diversas ocasiões dizemos frases contraditórias como forma de adjectivar o que vemos ou sentimos. Na verdade, embora parecendo, não chegam a sustentar uma contradição, mas antes se complementam. Quando expressamos a ideia de que «o Mundo é grande» ou "a Terra é pequena» estamos a querer dizer que este planeta onde habitamos encerra duas grandes dimensões. O Mundo é grande, pois por muito que viajemos e por longa que seja a vida, nunca alcançaremos conhecer todo o seu conjunto territorial com a sua natureza, os seus povos, as formas de viver nas suas diversidades, o dia e a noite em cada momento e em cada lugar. Por outro lado, a Terra é pequena quando a pensamos na magnitude universal, mesmo que apenas na sua galáxia. Mas a Terra também é pequena quando no interior de multidões ou separados por geografias com distâncias nem sempre fáceis de percorrer, encontramos alguém de forma inesperada. Foi isso que me assaltou o pensamento quando vi uma personagem caminhar lenta e descontraidamente, na direcção onde me encontrava. Saí de Roma com a intenção de viajar para Sul, mas sem destino e sem tempo. A tarde estava com aquela quietude melancólica do outono e, sentada, deixava que o olhar se perdesse pela multidão que chegava e partia. Foi nessa sonolência que fui despertada para alguém que se aproximava. A incredulidade daquela aparição durou alguns segundos e foi nesse deslizar do tempo que disse num murmúrio, «a terra é pequena». Ali estava na minha frente, Giuseppe Tomasi di Lampedusa. Amável, discreto, com um sorriso e poucas palavras convidou-me a visitar a sua Sicília natal e a casa onde nas férias de Verão, deixou correr a sua infância. De um momento para o outro a viagem que me levava para Sul, adquiriu destino. Desci pela Calábria e atravessei o mar em Messina. Encantei-me por esta cidade. Talvez pelo mar, pelo sol, pelo universo de azul ou ainda por sempre me fazer lembrar a Grécia, a outra, não esta. Segui para Palermo para descobrir os passos de Giuseppe, embora, sem saber, se procurava a vivência do escritor ou do narrador de “O Leopardo”. Talvez ambos, pois as suas vidas misturam-se. Em Palermo não consegui evitar o cheiro da máfia. Era um odor que já viajava comigo e ficou mais intenso. Tomei o comboio pela costa como Lampedusa na sua infância até Castelvetrano. O que era uma jornada de pesadelo até Santa Margherita di Belice agora é um deslizar tranquilo. Montevago, como nos diz no relato da sua infância era um dos passeios longos, mas agora ambas as pequenas cidades quase formam o mesmo espaço urbano. Subitamente, Santa Margherita desilude-me. É uma cidade nova com casas baixas, é certo, mas nada resta da velha aldeia. Como um dever, mas muito prazer, percorri os recantos do Museo del Gattopardo e o Parque Literário. Por ali me deixei ficar longas horas, meditando sobre Lampedusa e a sua obra. Fazendo parte da aristocracia siciliana, Lampedusa não só nos relata na sua obra prima a decadência da nobreza da Sicília no espaço temporal em que os Bourbons desaparecem e as hostes de Garibaldi unificam o território italiano. O extraordinário romance escrito já no final da sua vida faz-nos pensar como o território onde viveu o centro do poder do que foi um império poderoso e extenso, terminou, como todos os impérios, dividido em fatias que se disputavam entre si e assim permaneceu por quase quinze séculos. A riqueza da escrita de Lampedusa, não só nos cativa como nos entusiasma e enriquece no poder quase mágico como trabalha as palavras e as ideias, como constrói a vida das personagens e as mudanças societais ao nível dos detentores da riqueza. É um tempo de transformação idêntico ao que hoje contemplamos. Quando deixei os jardins do palácio de Lampedusa, subi pela via do Calvário. Procurava um lugar elevado na tentativa de encontrar o mar. Foi na subida que encontrei o centro histórico que procurava, mas em ruínas. Seduzida pelo autor de “O Gattopardo”, nem me ocorreu procurar as linhas históricas do lugar, daí desconhecer que há cinquenta e seis anos um violento tremor de terra arrasou a aldeia de Santa Margherita, talvez daí esta via do Calvário. No ponto alto que procurei pressentia-se o mar quinze quilómetros a Sul, mas não se viam a cor das águas. Para Norte era o desenrolar de pequenas colinas num manto de verde amarelado. Por ali me aquietei, procurando, a Sul, no horizonte directo a imagem de Cartago que os romanos imperiais arrasaram para que nunca voltasse a renascer. Pensar que pese embora toda a evolução da humanidade, dois milénios depois, os Judeus, que ocupam a Palestina, no chamado Estado de Israel, ainda fazem o mesmo e com a mesma impunidade dos imperiais de romanos. Mas Roma caiu um dia. O postal segue quando deixar este lugar.

 

     

 

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