StatCounter

View My Stats

01/12/24

NADA DE NOVO DEBAIXO DO SOL

Mário Martins


“A mesma peça. Elenco diferente.”

Imperador romano Marco Aurélio, Meditações, Séc. II

 

Irene Valejjo, uma escritora espanhola que a publicação do seu aclamado livro “O Infinito num Junco”, pelo qual recebeu em 2020 o Prémio Nacional de Literatura de Espanha, trouxe à ribalta literária, dera à estampa, em 2017, um ensaio sobre o mundo actual à luz da sabedoria da Antiguidade Clássica (nas palavras da editora), o qual reúne colunas publicadas no periódico Heraldo de Aragón, e a cuja compilação deu o sugestivo título “Alguém Falou sobre Nós”.

Como se diz agora, o mundo está do avesso. Depois de uma relativa acalmia proporcionada pelo “equilíbrio do terror”, a ampliação da percepção dos acontecimentos do mundo político-social de hoje, alimentada pela (des)informação constante e pela sedução da imagem, torna o presente de certo modo incomparável com o passado.

Em todo o caso, é inegável que, para lá do agravamento climático o qual, por variadas razões, não conseguimos suster, atravessamos um período de grande instabilidade, marcado por disputas territoriais, guerra, sofrimento e morte, pelo total desrespeito pelas normas internacionais, pela reacção às migrações, por uma escandalosa concentração da riqueza, pela absoluta primazia do interesse nacional, pela deliberada confusão entre o verdadeiro e o falso, pelo enfraquecimento da democracia política. Nas condições actuais, o presente é caótico e o futuro uma ameaça.

Isto é novo? Para a autora, “uma apaixonada pela mitologia grega e romana”, muitos tipos de acontecimentos negativos de hoje permeavam o esplendor das sociedades da Grécia e Roma antigas. A crítica e a sátira mais corrosiva de poetas indignados, como o romano Juvenal no séc. II, ou as teses e avisos de filósofos como o grego Aristóteles, há quase 2400 anos, são, de resto, prova evidente disso.

Algumas das situações que a autora descreve soam bem familiares:

“O célebre líder político Péricles gabava-se de Atenas ser uma cidade aberta onde não se expulsava os estrangeiros (…) No entanto, apesar das suas proclamações, o próprio Péricles aprovou uma lei restritiva que limitava a cidadania a quem tivesse pai e mãe atenienses (…) Ironia do destino, alguns anos mais tarde, Péricles apaixonou-se por uma mulher nascida na actual Turquia, a extraordinária Aspásia. Devido à reforma legal que ele próprio tinha impulsionado, o filho de ambos foi considerado um estrangeiro na sua cidade natal (…)”

Dois poetas romanos amigos, Marcial e Juvenal, “descreveram a inverosímil opulência da qual alguns cidadãos abastados se gabavam e, ao seu lado, as misérias de muitos romanos que sofriam a carestia da vida (…)”

A especulação imobiliária e os despropósitos da construção não são um flagelo explosivo do presente. A Roma Imperial conheceu a sua própria bolha, devido â qual a cidade vivia quase suspensa no ar, pois a ânsia pelo lucro levava a elevar cada vez mais os edifícios. Nestes arranha-céus antigos, construtores e empreiteiros economizavam o máximo possível reduzindo a resistência da obra e baixando a qualidade dos materiais. Os lucros eram fabulosos e os desmoronamentos numerosos (…)”

Corrupção é uma palavra que vem do latim e que significa «unir-se para infringir» (…) Montesquieu escreveu que foi Júlio César quem generalizou o hábito de corromper como mecanismo de financiamento político. As despesas eleitorais em Roma antes da era da publicidade e das aparições na televisão já eram enormes. Júlio César financiou a sua campanha para o consulado recorrendo aos fundos do rico construtor Crasso, a quem recompensou depois com contratos públicos (…)”

Segundo Aristóteles, cada sistema político tem um risco característico que habita no seu seio e ameaça fazê-lo fracassar. No caso da democracia, esse perigo chama-se demagogia, uma antiga palavra grega que significa «arrastar o povo», a qual descreve uma forma de governar na qual os argumentos são substituídos por apelos aos medos, preconceitos, amores e ódios dos cidadãos, constituindo-se como a «forma corrupta ou deteriorada da democracia» (…)”

Poderíamos acrescentar que “Na Roma antiga, um homem rico, para além de terras e de escravos (e também de um filósofo privado…), tinha uma clientela. Todos eles deviam visitar o seu patrono (…) numa mostra de adulação chamada cumprimento matinal (…) Em troca, conseguiam (…) um salário mínimo mensal que os ajudava a subsistir. Se não quisessem voltar com as mãos vazias, deviam chamar senhor ao patrono, precursor dos nossos modernos caciques. Esperava-se que o escoltassem quando ia tratar dos seus assuntos, que obedecessem às suas ordens e que votassem segundo as suas instruções. No meio desta parafernália de favores, servilismos e elogios, as assembleias e votações derivavam num mero simulacro (…)”

Como diz Margaret Atwood, escritora canadiana, recentemente citada por Henrique Raposo na revista do Expresso, “a história não se repete ipsis verbis, mas faz rimas numa cadência muito certa.”

Qualquer que tenha sido o sentido exacto da famosa frase “Não há nada de novo debaixo do sol”, que terá sido enunciada há cerca de 3000 anos pelo Rei Salomão e é citada no Ecclesiastes, ela retrata bem a constância fundamental do comportamento humano ao longo das épocas passadas, presente e, sem grande risco de nos enganarmos, futuras.

 

Sem comentários:

View My Stats