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01/10/20

NO CORRER DOS DIAS

Marques da Silva


Persépolis
(Persépolis)


Há viagens que sempre ansiamos realizar, como sonhos aventureiros com asas de esperança, mas há sempre algo a interditar-nos a acção a prender-nos ao chão, a impedir que os pés descolem, subam em nuvens voadoras e nos conduzam ao destino, a mergulhar na terra profunda, nos labirintos da História, nas marcas que a humanidade gravou no tempo e nas pedras, no deslizar da vida, no soprar dos ventos que produzem mudanças, alterações, fracturas. No final de Agosto, fatigados por um rio de caudal turbulento impulsionado por um contabilista portuense, com um argumentário de palavras instiladoras de medo e ódio, lamaçal onde sempre triunfa a debilidade mental de poderes maléficos, a selvajaria do ignóbil, partimos, num momento primeiro sem rumo, com a bússola deslizando ao sabor de instintos magnéticos como quem procura nos mistérios da Física encontrar o porto de abrigo, o território onde o passado vive ainda a sua magnitude esplendorosa de glória, mesmo que jazente nas planícies de pó, outrora cobertas de brilho e exuberância. Com a vontade dividida entre dois espaços, tão próximos e tão distantes, quase com o mesmo destino trágico, hesitamos onde primeiro pousar o olhar. Seguimos o curso temporal da história e descemos o Eufrates até às terras que viram erguer-se Babilónia. Quis o acaso e as circunstâncias evolutivas da geografia humana que o que hoje chamamos o Crescente Fértil fosse o tempo espacial onde a sedentarização adquiriu o relevo que a transportou para o presente como época de transformações, da vida, do conhecimento e das estruturas de poder, numa palavra simplificada, do início da História. Após a sua destruição e encerramento na poeira do tempo, viveu ainda através dos mitos que fez nascer e do património que lentamente vamos destapando para uma compreensão aproximada da sua vivência, da sua grandeza, do que representou para os povos que viveram no interior dos seus muros e de todos os outros que não a viram, mas da sua dimensão souberam, através das lendas que se propagaram, cada uma delas acrescentando mais elevação ao que já era elevado. Impressiona ainda, num tempo presente em que tudo é grande, a capacidade humana, na utilização de escassas ferramentas, superar o imaginável. Que povos não se submeteriam perante a audácia construtora que esmagava a pequenez humana? Quando os nossos olhos procuram reconstruir a Porta de Ishtar – raptada como tantas belezas excepcionais, para os museus europeus -, a deusa da guerra e do amor, percebemos, adquirimos a consciência plena do que é grande e poderoso, da solenidade, da fraqueza humana que através de esforços colossais, procurava agradecer a deuses como Anum, Enlil e Enki, e por cima de todos, Marduk, os quais, acreditava, lhe podiam conceder a graça divina e a força suficiente para conquistar e reinar nos territórios até onde o seu pensamento acreditava poder ir. Impressiona, cativa, olhar no presente o que resta do passado, percebendo-se o quanto foi desmedida a audácia humana sobre as terras do Eufrates. A via processional e o zigurate Etemenanki, a Babel, “a porta divina” através da qual os babilónios penetravam no espaço sagrado do seu deus maior, senhor dos céus e da Terra, Marduk. Os palácios e templos erguidos pelos Nabucodonosor, possuem essa elevação arquitectural que nos deixa na estupefacção do inexplicável. Nas areias do deserto iraquiano brilha ainda na luminosidade do dia e no silêncio ancestral da história o fulgor da civilização babilónica, do poder dos deuses inventados condicionando e limitando a acção humana, enquanto esta se superava nos seus gestos para lhes seduzir a atenção e ser por eles bafejada no exercício de domínio sobre os povos. Afastamo-nos lentamente em direcção a Leste como se nos despedíssemos em perda, em sofrimento pela queda do que parecia eterno e hoje vive como recordação de que tudo é perecível apesar do poderio de todos os deuses. Atravessamos uma dessas fronteiras onde em tempos tão próximos, se verteu de novo o sangue dos povos mesmo acreditando no mesmo Deus, mas separados pela sua representação terrena, a única real. Na província de Fars detemo-nos sobre as montanhas Kuh-e Rahmat e deixamos que o olhar vagueie pela planície nesse prazer de observar. O nosso pensamento emudece na contemplação do horizonte, sentimo-nos diminuídos e chegam-nos sons longínquos de uma beleza irrepetível. Silenciosas, as ruínas de Persépolis estendem-se à nossa frente e experimentamos esse encanto pelo que é único e inimitável. Dario I quis demonstrar o quão grande e extenso era o domínio aqueménida e iniciou o surgimento da capital que mostraria esse fausto e fascinaria até à rendição os povos que se iam submetendo à sua vontade. Quando nos colocamos num plano superior ao túmulo de Artaxerxes III e deixamos o olhar percorrer as ruínas, no sossego que nos toca conseguimos reconstruir a Sala das Cem Colunas, a Apadana, a jóia de Persépolis, as cores que cobriam as paredes e as colunas ornamentais, as estátuas esculpidas nos muros que acompanhavam as escadarias que levavam os homens até ao poder, real e divino. Tudo parece imenso, esmagador, desmedido para a própria época. No entanto, está na nossa frente, perante os nossos olhos atónitos, no encantamento de uma contemplação que nos aquieta a alma, nos faz sentir não apenas passageiros da história, mas também da eternidade. Alexandre o Grande foi um general de sucesso, fundou cidades e destruiu outras. Submeteu povos e lugares, governou espaços diversos, mas poucas marcas deixou na sua terra natal, a Macedónia. A grandeza dos seus feitos prolongou-se para além da sua curta vida, bem como os incêndios que ateou para gáudio do seu poder. Assim, aconteceu com Persépolis, incendiada numa noite de luxúria e embriaguez. Contudo, o império de Alexandre desmoronou-se com a sua morte e nem o lugar do seu sepultamento conhecemos. Porém, a Persépolis que submeteu e aniquilou, ergue-se ainda, soberba, imponente, orgulhosa da sua grandeza, impressionando o olhar humano e dizendo-nos que as pessoas perecem, mas as pedras, o património, as construções erguidas aos feitos humanos e divinos, não se apagam, renascem do enterramento a que foram submetidas e voltam a exercer fascínio sobre todos aqueles que as contemplam.


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