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01/10/20

A VIDA MENTIROSA DOS ADULTOS

António Mesquita


(Nápoles)

"Um livro é produto dum outro eu diferente daquele que manifestamos nos nossos hábitos, na sociedade, nos nossos vícios."
Marcel Proust


Elena Ferrante, "A vida mentirosa dos adultos". A escrita desta literata sem rosto é fluida e atraente. Mas qual é o segredo destas histórias de bairro que se desenrolam quase sempre em Nápoles, se pusermos de lado o anonimato militante como fautor de sedução?

Mesmo quem nunca tenha visitado a cidade do Vesúvio acaba por se familiarizar com as suas ruas e quarteirões, os seus jardins, praças e monumentos. A esta unidade de espaço corresponde a das personagens que são todas de uma ou outra família da vizinhança.

Amor e ódio, génio ou boçalidade, enfatuações e invejas entretecem-se ao longo das páginas como motivos musicais que nos cativam sem explicar a moda Ferrante entre um certo público. 

A autora parece fazer questão de não deixar a psicologia, a vida interior ou os estados de alma interferirem nas suas histórias. A política ou a história estão completamente ausentes. Tudo se passa na vida sentimental, mesmo que imaginária. É a sublimação da antiga "Colecção Azul" que a minha mãe devorava?

No seu último romance, a família nuclear, pai e mãe são desinvestidos de qualquer carga simbólica para serem objecto de uma "desmistificação", duma "passagem à civil" essenciais, tal como a desvirginização da cena final, distanciada e fria como uma cirurgia clandestina, tudo motivado por um desejo de emancipação de Giovanna, a narradora da "Vita Bugiarda".

Não se sugere que este relato seja falho de algum nível de profundidade, sentido ambíguo ou da complexidade de que todos temos a experiência na nossa própria vida. Ideias há-as, a da emancipação de tudo e de todos, é uma delas, mas os "factos" da narração, a existir uma qualquer premissa de realismo ou de conformidade com a vida real, são curtos.

Contudo, essa impressão passa ao lado do que talvez seja o projecto duma escrita "feminina" que se distinguiria da arte da maior parte das autoras conhecidas quer se incluam no período romântico ou na modernidade. A nossa Agustina, por exemplo, tão espirituosa e cerebral, oferece-nos uma escrita nos antípodas do "feminismo" da autora napolitana, e não é por não existir na obra de Bessa-Luís uma malícia "feminina".

É que o empreendimento da Ferrante é mais radical e, como não podia deixar de ser, mais redutor. As suas personagens são oriundas dum meio popular, falam italiano ou o dialecto, quando estão zangadas, nada lhes é mais estranho do que um qualquer interesse para lá do seu bairro e do seu caso pessoal. Em suma, para estas mulheres que falam e gesticulam, só contam os mais próximos e os afectos e desafectos.

A jovem que fala na primeira pessoa na "Vita Bugiarda" inteira-se da sua sexualidade - e são páginas fortes e originais - e do que a separa da maneira de ser dos seus familiares, mas não procuremos, nestas páginas, por exemplo, o menor indício dum problema de desigualdade entre os sexos (que poderia ser já uma chave política).

Só Ferrante poderá dizer até que ponto a sua vida inspirou estas histórias napolitanas. O que podemos dizer, porém, é que os seus romances reduzem a vida aos dados mais superficiais duma biografia, ficando longe dum qualquer realismo. Mas talvez que esta redução e a miniaturização do contexto imponham uma outra visão da obra, que não incluiremos no fantástico, isso não, mas, talvez, no conto "moral" inconclusivo, afinal. 

"La Vita Bugiarda" é a história duma emancipação "desnorteada". Giovanna é uma jovem napolitana que repudia os pais para, ao princípio, tomar como modelo uma tia desavinda, depois largando amarras e atirando-se de peito aberto às aventuras do acaso. Compare-se esta disposição e este desafio com os de Julien Sorel, ex-seminarista cheio de ambições napoleónicas, ao chegar a Paris na obra-prima de Stendhal "O Vermelho e o Negro"). Sorel tem um ídolo e uma inspiração para defrontar a sociedade burguesa e o salão de La Mole. Giovanna acaba de se livrar do hímen e está pronta para todos os encontros. "A montanha pariu um rato".




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