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01/10/20

BUFANISMO

Mário Martins


http://www.etimologista.com/2012/11/o-bobo-e-o-bufao.html


“O bufanismo pretende substituir o que se proclamava irredutível, a democracia ancorada em direitos formais, o parlamentarismo, o contrato social negociado ou imposto, em todo o caso reconhecível, pelo arbítrio (…)”
A estratégia do bufão
Francisco Louçã
Revista Expresso, 15Agosto2020


Num excelente ensaio, Francisco Louçã define o novo modus operandi da extrema-direita, a que chama bufanismo: “Bufonear é uma operação narcísica que pretende o máximo de exposição com o máximo de controvérsia, pois nasce do desejo de ocupar de forma totalitária o espaço público (…)”. E especifica: “Poderia dizer-se que houve sempre arbítrio (…) ou que a solenidade e a pose das democracias ocidentais esconderam caves de tortura, genocídios coloniais, censuras de muitas formas (…) Mas estas operações escondiam-se, não eram motivo de orgulho anunciado, chocavam com o senso comum, pareciam ser a excepção da regra. Não se imaginava então que um chefe de uma potência nuclear comunicasse decisões por tuítes, buscasse apoio com uma agenda limitada a criar ressentimento e ódio, se enfunasse com os números de infectados e mortos por uma pandemia que desprezou ou se vangloriasse da sua bufoneidade (…) Pois tem sido isso mesmo que tem dado vitórias à nova extrema-direita.”

Donde, apesar de, no momento em que escrevo, o candidato democrata estar à frente nas sondagens, não falta quem vaticine nova vitória de Trump nas próximas eleições presidenciais americanas. 

É, no entanto, costume dizer que “à primeira quem quer cai, e que à segunda só cai quem quer”. Se, pelas regras do sistema eleitoral americano, o eleitorado voltar a eleger Trump, poderemos continuar a dizer que a eleição foi, outra vez, manipulada pelas redes sociais e pelas notícias falsas nelas veiculadas? ou que resultou de uma campanha democrata negativa que, pelo menos até agora, parece assentar basicamente na denúncia de que o actual inquilino da Casa Branca não tem perfil para o lugar? 

Existe uma tendência nos regimes democráticos (nas ditaduras, a questão não se coloca…), para desresponsabilizar os eleitorados como se, em vez de pessoas adultas, fossem constituídos por inimputáveis que, todavia, na vida quotidiana, são considerados responsáveis, sejam ou não pessoas informadas e letradas. E como se o princípio democrático não fosse, fundamentalmente, o direito de cada pessoa escolher, seja qual for o seu grau de formação e informação, a sua inteligência, ou o seu interesse e motivação. Esta é a “fraqueza” do “pior dos regimes excluindo todos os outros”.

Nessa visão complacente, considera-se que muitos dos eleitores, por falta de informação séria e de cultura, são facilmente levados ao engano, constituindo o eleitorado um mero joguete de políticos, poderosos e forças ocultas. Sem pôr em causa a influência deste combinado de forças e sem negar importância ao nível cultural dos eleitores e aos novos meios de informação e socialização que potenciam a velha arte da manipulação, saliento, no entanto, que os jornais e as televisões não dizem todos o mesmo, e que há uma preferência preestabelecida de cada um na sua escolha, seja dos candidatos, seja das redes sociais a que adere. Pura e simplesmente, há jornais e programas ou canais que não queremos ler ou visionar, porque o que realmente gostamos é de ler, ouvir e ver o que, à partida, corresponde ao nosso gosto ou às nossas ideias ou valores.

A crescente profissionalização da política e dos cargos públicos e privados a todos os níveis da sociedade, conduziu a uma crise de cidadania, e acentuou o divórcio entre eles, os governantes, e nós, os governados, em que a maioria das pessoas prefere pagar para não se ralar com a gestão do condomínio em que habita, e em que a política, enquanto gestão do bem comum, apenas lhe merece, quando muito, uma conversa superficial e casuística à mesa do café, ou uma crítica mais ou menos desbragada nas redes sociais ou, em apenas metade dos casos, o voto no serviço à lista eleitoral. Esta atitude descomprometida do cidadão ou eleitor comum apenas se altera na hipótese de percepção de acontecimentos que afectem ou ameacem afectar gravemente a sua vida - como foi o caso, há anos, entre nós, da Taxa Social Única, ou, mais recentemente, o caso dos coletes amarelos em França - que fará espoletar o protesto de rua e, quiçá, a revolta e a violência, sob o impulso, aparentemente inorgânico, das redes sociais.

No seu artigo, Louçã introduz uma nota optimista: “A depuração de ódios individuais para dar lugar à construção de ódios colectivos pode sempre naufragar na praia da vida quotidiana. A telerrealidade deslumbra enquanto é tele, mas a realidade subsiste sempre.” Uma derrota eleitoral de Trump, seria uma machadada no populismo indecente que por aí grassa, a puxar e a alimentar-se do que de mais primário há em nós. Mas se voltar a ganhar, será porque os americanos, por via da abstenção e da escolha maioritária de delegados, e perante as provas dadas no primeiro mandato, aceitaram ou preferiram a sua administração, apesar de todas as críticas e denúncias.

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