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01/05/19

O SONHO NOS ANOS DE CHUMBO

Filipe Augusto



Aquele Outono parecia mais frio que o normal. Certamente seria igual a tantos outros, mas a aula de Pintura Decorativa com o Prof. António Cruz até às 22 horas, tornava a noite mais cinzenta. A aula era demasiado silenciosa, a face sorumbática do mestre e as luzes amarelas da sala em nada ajudavam a um ambiente sadio.

Hélder tinha um amigo, um jovem de Oliveira do Douro que aos Sábados organizava bailes na garagem, em frente ao Colégio do Sardão, onde meninas em regime interno, espreitavam pelas janelas. Hélder comparecia, mas a timidez e a incapacidade de movimentar os pés em ritmo de dança transformavam-no quase sempre num espectador do baile. Em casa, isolava-se em leituras da Vida Mundial e durante meses, levantava-se mais cedo para durante quinze minutos antes de caminhar para o trabalho, ler algumas páginas dos III volumes da Grande Crónica da Segunda Guerra Mundial editado pelas Selecções do Reader’s Digest que tinha adquirido com as suas poupanças.

Algo ansiava na sua alma, mas o caminho que procurava não se desenhava na sua frente, aparecia disfarçado e camuflado, não visível aos olhos, não lhe conhecia os contornos. Mas, sobretudo, aquelas aulas nocturnas, foram-no aproximando de outros dois jovens recolhidos nos seus pensamentos e comedidos nos seus actos, o Fernando e o Rui. Talvez por mais aulas em comum, aproximou-se mais do Fernando e passou até a acompanhá-lo pela cidade e assim foi conhecendo a Unicepe, onde o seu amigo se enchia de livros. Foi ao conversar sobre um desses livros, “Asas de Israel”, a propósito da «Guerra dos Seis Dias» que tinha acompanhado pelo JN, que teve a primeira surpresa, Fernando estava ao lado dos maus, colocando dessa forma em causa tudo o que Hélder acreditava saber sobre o mundo.

Os passeios foram-se alongando e a amizade cimentando. Naquelas noites de Outono, começou a ver que a capa onde o Rui e o Fernando traziam os livros estava forrada com um pequeno cartaz com as palavras, «MDP – CDE – Comissão Eleitoral». Era uma grande novidade e as perguntas foram surgindo. Os pilares da sabedoria que Hélder trazia estremeciam como num tremor de terra. Um mundo desconhecido e escondido, emergia à superfície, cautelosa e paulatinamente.

Meses ainda haveriam de passar, até uma jovem de rosto bonito, alta e atractiva, o guiar uma noite e com grande atraso até casa do Fernando e na presença de ambos foi ouvindo falar de presos políticos e «Comissão de Apoio e Socorro» aos mesmos. Começou a ler documentos que não supunha existir e o novo mundo, essa esperança de um espaço de justiça e liberdade passou a fazer parte dos seus sonhos.

Mais tarde, apareceu o Serra e a sua vida passou a ficar dependente das imensas tarefas que apareciam a cada semana, a cada momento em episódios de resistência, de luta e combate por um futuro que todos acreditávamos ser melhor.

Nas comemorações do 31 de Janeiro de 1971, numa sala do 1º andar de um restaurante localizado na esquina das Ruas, de Sá da Bandeira e Formosa, perante dezenas de lutadores de longa data contra a ditadura, a dado momento, o Serra diz-lhe para falar em nome do MJT. Entrou em pânico, pois nem sequer sabia o que dizer e, menos ainda, ser capaz de enfrentar aquela plateia de pessoas de uma resistência tenaz ao longo dos anos. O Serra escrevinhou um texto em meia dúzia de pequenas folhas e, sem saber como, estava na frente de toda a sala a falar para um microfone, lendo as palavras que lhe foram escritas, enquanto a mão que segurava os papéis tremia de forma visível. Nesse dia, não perdeu o medo nem a timidez, mas aprendeu a controlá-los. Hélder tinha então 18 anos.

Os três anos que se seguiram são uma longa história, integrada numa mais ampla e colectiva, que o haveria de levar até ao sopé dos Himalaias, num combate desigual que nunca parou e que ainda hoje continua, noutros moldes e espaços, com outros métodos, nessa vontade de fazer avançar a utopia, esse sonho de esperança, esse querer do bem-comum.


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