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01/05/19

CARTAS A MARIA

Artur Simões



A chuva chegou como previsto. A cada dia, os serviços de meteorologia tornam reais as suas previsões, utilizando métodos de cientificidade que nos auxiliam à compreensão e comportamento dos fenómenos da natureza. Chegou pois, na hora indicada, mansa e vagarosamente, para nos permitir adquirir um tempo de preparação e tomar providências que diminuíssem o seu efeito sobre o nosso corpo, as nossas acções, e nos deixasse aconchegar entre as paredes da casa, o refúgio adequado para tantas intempéries. A alma ressentiu-se, talvez fruto de um dia agitado e o passado tombou sobre a memória como uma ferida aberta. Procurei o abrigo das coisas sem importância para que as horas crepusculares não tornassem mais difícil essa angústia ansiosa que faz nascer imagens há muito guardadas. A subida foi lenta e pausada. A extensão e a inclinação assim o exigiam. Procurei, como quase sempre, olhar e pensar no que se encontrava mais próximo, no que se apresentava no horizonte visual, iludindo assim o tamanho da distância até ao destino. A cada passo, adivinhava-se o que em breve seria uma certeza. Foi já no ponto alto onde ascendeu a nossa vontade, depois de breves paragens para deleite do olhar sobre a beleza, tão natural, agreste, mas harmoniosa e sedutora, que a realidade se apresentou intransponível ou com demasiados riscos para prosseguir. Como na vida, também aqui, é preferível parar, quando um obstáculo se impõe ao sonho. Não que a fantasia que vivemos não compense, mas antes por os riscos desvanecerem a excelência da utopia. Perante o manto branco que alagava o olhar e o horizonte, voltei a cobrir de preto a esperança como as mulheres marítimas tapam de escuro o corpo para que o esquecimento não devore a mágoa e a dor do que perderam. Abandono-me a esse luto. Tudo aparece como no deserto, mas as formas alteram e fazem a diferença. Nenhum ponto espacial é igual, todos diferentes. Não se vislumbra alma humana e, no entanto, não há solidão, apenas essa formosura que tonaliza a paisagem, nos recomenda silêncio e contemplação. Detemo-nos a pensar, mais reflectir, mas sentimos que os pensamentos se desfazem como as nuvens que passam. Embalam-se numa dança celestial e desintegram-se ou alteram as formas. Ficamos calados, nesse êxtase enigmático para o qual não encontramos tradução e lembro o tempo em que escrevia palavras de madrugada como se os dias não tivessem, nem dia nem noite. Abre-se diante de mim, um sol luminoso. Sim, a luz alaga tudo e aquieta-nos o olhar, faz-nos viajar para tempos remotos para planícies que se viriam a cobrir de sombras como se desejassem tapar a alegria, escondê-la em lugares que não se vissem, como se nunca tivessem existido, como se as nossas mãos não se tivessem encontrado e entrelaçado como a fusão de corpos materiais. Gosto desta luz e os meus olhos cansados da longa jornada que do fim se aproxima ainda se erguem, ainda sentem a plenitude de percorrerem o teu corpo inteiro procurando um lugar de repouso, um sentir de eternidade. Levava-te um beijo que pousava num lugar à tua escolha e o desatino que dele nascia, impulsionava o pulsar da vida que compartíamos. Resta ainda esta luz, iluminadora de desejos e vontades. Vigora de dia, dá cor, alimenta a vida, mas é agora apenas lembrança sem caminho para caminhar.


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