Aveiro. Procuro habituar os sentidos aos sons e ruídos das
cidades que há muito não frequentava. Deixo-me ir na multidão, sem pressa e
diluindo qualquer naco de ansiedade. Procuro nos rostos e nos movimentos dos
que me rodeiam, compreender as angústias e os cansaços das rotinas do amanhecer,
quando o dia nasce e estende os seus braços para receber aqueles que procuram
no trabalho a necessidade de sobrevivência ou a ideia de felicidade. Todos os
dias parecem iguais. Deambulo pelo átrio da grande estação como se estivesse
alheia ao ambiente que vai circulando à minha volta. Olho para o amplo vidro do
quiosque e vou lendo os títulos. Detenho a atenção no jornal que tem por lema,
Erguer muros onde se abriam portas. Aparece um fundo negro, como se fosse o
resto calcinado de um longo incêndio quando a notícia são as futuras eleições
autárquicas. Talvez represente a escuridão que pesa sobre nós como um enorme
Zepelim representado por essa quadrilha ideológica que nos arrasta para a
selvajaria das ideias, do verbo e da aldrabice despudorada. Num canto desta
escuridão podemos ler como uma representante das ideias de taverna é obrigada
pelo tribunal – por enquanto ainda funciona – a corrigir uma das suas maldades.
Mas no fundo da página ainda é possível saber que o homem laranja acaba de
fundar a empresa Gaza Co. com esse inenarrável Tony Blair a CEO. Os direitos do
povo palestiniano reduzidos a um negócio presidido por alguém que não consegue
distinguir a Arménia da Albânia. Os criminosos do chamado Estado de Israel vêem
assim contemplado o morticínio que ainda não pararam. Não são apenas criminosos
de guerra, são-no de toda a humanidade e o único lugar que lhes deveria estar
reservado, era o do banco dos réus igual ao de Nuremberga. O ar do planeta
purificava-se com o seu desaparecimento. Por fim, os olhos pousam ainda na notícia
que nos diz que a Direita continua igual a si própria e ao que sempre foi,
entregando a propriedade comum, o património do Estado, ao delírio do bem
privado. Continuamos como no romance de Remarque, “A Oeste nada de novo”.
O comboio desliza sonolento mostrando-nos a velha cividade desta cidade que
nunca esquecemos. Balanceamos na cadência que vai parando e reiniciando a
marcha e quando alcançamos este lugar onde me vou deter o dia já se ergueu e as
pessoas, como personagens, traçam rotas cruzadas com os seus afazeres, aqui e
ali e mais além. Retenho o olhar sobre o edifício da antiga estação com as suas
portas e janelas e os diversos telhados que a cobrem e, naturalmente, a beleza
dos seus azulejos. É o que resta de um tempo imobilizado e pardacento. Quando
nos voltamos surge-nos a longa avenida que nos conduz aos primeiros espaços
habitados. Há muito que leva o nome de um médico e benemérito que é uma palavra
que sempre me aflige. Foi presidente da Câmara ao longo de um quarto de século,
com obra feita, ao que consta, tendo iniciado o mandato na primeira República e
entrado pela Ditadura adentro, aparentemente não se terão dado mal, o
benemérito e a Ditadura. Mas não é dele que tenho memória, mas de um outro
médico, um ilhavense que muito calcorreou por esta cidade, procurando curar os
corpos e despertar as almas e as consciências. Despediu-se de nós cedo demais
deixando-nos um recado que não deveríamos esquecer: “façam um mundo melhor,
ouviram? Não me obriguem a voltar cá”. Pelo caminho que as ondas levam,
estou em crer que Mário Sacramento bem terá de voltar. Avenida fora não me
cativa nem as guloseimas da cidade, nem os que por ela correm. Procuro na
lonjura do tempo as imagens que marcam os espaços, as épocas e as epopeias
humanas por mais singelas que possam parecer. Por longo tempo deixo o olhar
repousar sobre o edifício do antigo Cine-Teatro Avenida, lembrando o dias em
que a liberdade passou por ali, erguendo a voz contra os esbirros e desafiando
o que então era conhecido como “palhaços lacrimogéneos, capacetes de aço”,
donos da violência e protectores de uma Ditadura, que os bem-falantes agora
dizem, Estado Novo, que cada vez mais se afundava na miséria obscurantista de
uma moral lamacenta. Mas esta urbe hoje universitária ainda lembra uma
princesa, Joana de seu nome, virgem até à morte, irmã do Príncipe Perfeito
que a procurava para se aconselhar, e que regente do Reino chegou a ser. Por
muitos amada, a todos recusou e refúgio nos dominicanos, aqui procurou. Aveiro
protege-lhe a memória no Museu Municipal e em nome de freguesia. Sim, a cidade
também é as salinas, os doces conventuais, as antigas ruas de um tempo que a
viu nascer, mas não era esse o gosto que trazia de visita. Regresso à estação
que a viagem prossegue. Pena não teres vindo para enriquecer o que procurava. O
postal segue ainda hoje.
01/10/25
NO CORRER DOS DIAS
Marques da Silva
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