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01/06/23

NO CORRER DOS DIAS

Marques da Silva







Quando viajámos ao longo de várias semanas, ocorre com frequência que há dias que parecem sombrios, plenos de melancolia, que nos prende e, em certos momentos, quase nos sufoca, nos faz arrastar os passos e entristecer o olhar. O que vemos, a natureza, a envolvência rural, o curso do rio, tudo aparece com cores tisnadas, sem luz nem vida. O terceiro dia desta jornada pela N222 surgiu assim ao amanhecer, como se durante a noite, o mundo inteiro tivesse mudado como chegou a sonhar Yukio Mishima. A estrada até seduzia para a viagem, com os seus tons verdes rodeando as margens, enchendo o horizonte. As habitações rareavam o que permitia esse usufruto encantador do silêncio, mas algo emperrava a alegria que se deseja para observar o tempo e o espaço envolvente. Ainda nos perdemos nos arruamentos em torno das minas do Pejão, desse carvão que africanizava os rostos dos homens que desciam às profundezas da terra, desde o final do século XIX até cem anos depois. Encerradas abruptamente, vi como em tantas outras ocasiões, milhares de pessoas com a vida interrompida num lugar tão perto e tão longe do Porto. Foi a migração e a emigração, a fuga ao desvario dos poderes que só decidem em nome de interesses espúrios. Agora, entre o verde e o sossego ali residem os restos do que foi uma fonte de trabalho e riqueza. Foi o primeiro momento em que nos deixamos ficar na contemplação do Douro, sem rigores de tempo nem de anseios. Parece estranho o Distrito de Aveiro estar ali nas margens do rio que de tão longe vem. Talvez por isso, estes concelhos decidiram somar-se à área Metropolitana do Porto. Já não olhamos para os quilómetros. Deixaram de ter importância. O traçado da via é agora moderno, largo, com bermas, curvas abertas e uma terceira via quando a inclinação é pronunciada. É a tentativa, lenta, de aproximar estas gentes do litoral, dos serviços, das fontes onde o trabalho existe. Quando alcançamos o Arda, compreendemos que o objectivo que nos propuséramos não vai ser alcançado. Há demasiado mundo a pesar no pensamento. Um mundo que nos deixa, quantas vezes, entre a perplexidade e a impotência, a raiva, quase diríamos, ao ver a placa que indica a freguesia próxima. Os impérios coloniais foram desaparecendo em cada grande guerra que fizeram brotar. Vivemos a terceira e outro império entrou na fase descendente e como alguém disse, «os impérios morrem matando». Os cemitérios enchem-se de esfomeados, de soldados que morrem em nome de nada. Como no poema de Geraldo Vandré, “Nos quartéis lhes ensinam uma antiga lição, de morrer pela pátria e viver sem razão”. Quando olhamos para a Europa vemos de novo Roma, em declínio, moral e ético, com os princípios e os valores de uma ganância financeira sem limites a destroçar os seus séculos de história. Mil e quinhentos anos depois, a história repete-se. Precisamos com urgência de mentiras novas. Atravessamos lentamente o Arda e para desvanecer este horizonte opaco, abandonamos a N222 e arremetemos pela subida ao Monte de S. Domingos. Penoso e elevado esforço, mas o cansaço fez desvanecer as nuvens que pairavam sobre o dia. Ali chegados, sentamo-nos, esticamos o olhar e deixamos o tempo correr. Por hoje, já não nos movemos mais. Ao fundo, o Douro espraia-se na sua majestade senhorial. Alonga-se em curvas e transmite um ar de frescura azulada à paisagem. Na outra margem as terras de Sebolido e Rio Mau. À direita, o traçado da nossa estrada alonga-se entre as montanhas que mais parecem colinas. A tarde tomba nessa lentidão nostálgica, nesse ocaso diário arrastando-nos para a noite que aqui, talvez possa ser de estrelas galaxiais. Como os dias não são iguais, amanhã prosseguimos.



PS – Lemos na wikipédia que “O falcão-peregrino (Falco peregrinus) é uma ave de rapina diurna de médio porte que pode ser encontrada em todos os continentes excepto na Antártida [por enquanto]. A espécie prefere habitats em zonas montanhosas ou costeiras, mas pode também ser encontrado em grandes cidades”. Descobrimos um em Coimbra, mas certamente haverá mais. Ao contrário do que se possa pensar, não é uma espécie em extinção, pode até, se não for controlada, tornar-se uma praga. Nem sempre são visíveis, mas surgem em tempos sombrios, quando a infâmia caminha sem medo pelas ruas.

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