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01/06/23

MAL VIVER/ VIVER MAL

António Mesquita

"Mal viver", filme de João Canijo (2023)



"Assim, 'prima facie', todas estas questões parecem artificiais e sem sentido, mas quando muita gente, sem que tenha sido manipulada, começa a dizer coisas sem sentido, e há entre os que o fazem pessoas inteligentes, Isso habitualmente deve-se a algo mais que coisas sem sentido."

(Hannah Arendt: "A Última Entrevista e Outras Conversas")



"Huis clos" num hotel de Ofir, ou não fosse filmado durante o isolamento do Covid.  Como na peça de Sarte, "o inferno são os outros". A mãe,  Piedade (Anabela Moreira) podia deslizar sem sobressaltos na sua distração essencial. Mas está prisioneira duma imagem que os outros lhe devolvem. Piedade é fria, sempre agarrada a um canídeo chamado Alma, "et pour cause". Quando a filha procura a proximidade do seu  corpo, ela prefere a cadela. 

Três gerações se confrontam sem personagens masculinas, a não ser a do pai, falecido há pouco tempo. Sara (Rita Blanco) é a avó que gere a herança familiar e ameaça vender o hotel. Ela própria é crua para a neurastenia da filha que por ricochete atinge a neta  Salomé (Madalena Almeida).

Podemos pensar em hotéis duma espécie tétrica, como o da canção dos Eagles ("Hotel Califórnia") ou o labiríntico lugar de "Shining". O tema da incomunicabilidade lembra Bergman, em que há um fundo metafísico que aqui não existe, ou a grande inspiração do cineasta sueco, o dramaturgo de "A menina Júlia" e de "Amor maternal", August Strindberg.

Mas, mais prosaicamente, o que no filme de Canijo parece sobrelevar é a falência, neste tempo crepuscular, de um dos mais renitentes mitos da nossa cultura judeo-cristã, o da mãe abenegada até ao sacrifício total pela prole, esse destino que a religião e uma ideia ingénua da natureza pareciam ter desenhado para sempre.

Freud já havia infringido a regra ao presumir um interesse vital, um instinto que não se confundia com o da maternidade, segundo a doxa. O indivíduo parece triunfar no fim, quanto mais não seja como personagem dramática no conflito interior.

Numa das últimas cenas, em que a família revê o álbum das fotografias, numa atmosfera cordial, Piedade, que se depara com a concórdia do sofá tem o sentimento que é ela o único obstáculo à felicidade dos outros. Prepara mensagens para cada uma e percebemos por um corpo flutuando ao canto da piscina, que se suicidou, de madrugada.

A chave psicanalítica não é "de mise". O "mal viver" é de outra ordem. E o significado daquela morte, deduzida, pelo canto do olho, é o da irrelevância, como se fosse a conclusão  duma não existência.

Filme de mulheres, desprovido do olhar masculino que o enredaria na trama do desejo e do romanesco, apresenta-se como a utopia duma sororidade ferida de morte.

Este filme faz parte dum díptico, com "Viver mal", e ganhou o "Urso de Prata" em Berlim.

A segunda parte não é, como se tem escrito, o drama visto pelos hóspedes do hotel. É o mesmo mundo neurótico com mães ciumentas das filhas e dos seus amores, como Medeias prontas a tudo para não serem destituídas do pedestal da adoração absoluta. 

De acordo com Canijo. "os dois filmes são sobre a ansiedade de ser mãe". Corresponder ao ideal dum amor sem limites, sem ego, neste tempo de mónadas independentes e sujeitas a tracções colectivas superficiais, está acima de qualquer um. 

Sara, a avó, parece lidar com isso sem problemas de maior. Enquanto Piedade dir-se-ia sofrer mais enquanto filha sem amor do que como mãe desnaturada. Em "Viver mal", são as mães (grande interpretação de Leonor Silveira e de Beatriz Batarda) que mais sofrem com uma destituição amorosa que se parece muito com a perda do sagrado.

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