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01/05/20

O JORNALISTA DESPORTIVO

António Mesquita
The Sportswriter: Amazon.co.uk: Richard Ford: 9780747585176: Books


O título diz alguma coisa sobre um livro? Nem sempre diz. Neste romance de Richard Ford, o espectáculo desportivo é um dos gostos mais enraizados da personagem, Frank Bascombe, mas não ocupa quase nada das suas meditações. O jornalismo desportivo, por outro lado, é uma actividade de substituição que lhe dá algum prazer e não tem a responsabilidade da literatura - ele publicou um livro de contos há mais de 10 anos que interessou uma produtora cinematográfica (o que lhe grangeou e à sua família de então um bom impulso económico), mas a certa altura, a inspiração parece ter secado.

Nesse âmbito, entrevistar um antigo astro do futebol americano, atingido pela tragédia pessoal que o plantou numa cadeira de rodas, é literatura e da boa. Só que a circunstância jornalística o absolve de qualquer ambição intelectual ou artística. No fundo, Bascombe, enquanto não escreve a sequela do seu primeiro livro, vai afinando os seus instrumentos de bordo, com entrevistas como esta, que não poderia ser mais interessante do ponto de vista de uma "visão do mundo".

Eis um extracto da dita entrevista com Herb Wallagher:

"- Quer ouvir o sonho que eu tenho constantemente? 

Herb enrola o papel entre os dedos e depois empurra a cadeira rumo ao fim do cais. Eu fico sentado na balaustrada a olhar-lhe para as costas. Os ombros ossudos de Herb são como asas, O pescoço é esguio e tem rugas, e a cabeça aloirada está a ficar careca. Não sei se ele sabe ou não onde eu estou, ou mesmo onde ele próprio está. 

- Gostaria muito de ouvir o sonho. 

Herb fica a contemplar o lago como se nele estivessem todas as suas esperanças perdidas. 

- Sonho com três velhas num carro empanado numa estrada escura. Duas delas estão a levar a avó, uma velha muito velha, de volta ao lar de idosos. Algures. Digamos no Estado de Nova Iorque ou na Pensilvânia. Eu passo no meu jipe - em tempos tive um jipe -, paro e pergunto se precisam de ajuda. E elas dizem que sim. Que estão ali há muito tempo e que não apareceu ninguém. E percebo que estão preocupadas comigo. Uma delas até tira o dinheiro para me pagar antes mesmo de eu começar. Têm um pneu furado. Acendo os faróis do meu jipe virados para o carro delas e vejo que a avó está muito preocupada e cabisbaixa no banco da frente. E tem uma barbela que nem uma galinha. As outras duas ficam ao meu lado a ver-me mudar o pneu. E, enquanto estou a mudá-lo, penso em matá-las, às três. Estrangulá-las com as minhas próprias mãos e depois ir-me embora porque nunca ninguém iria descobrir quem as tinha matado, uma vez que eu não era um assassino e ninguém sabia que eu tinha estado ali. Mas nessa altura olho em volta e vejo um veado a olhar para mim por entre as árvores. Com aqueles olhos amarelos. E é tudo. Depois acordo.- Herb vira a cadeira de rodas e olha-me de frente. - Que tal este sonho? O que lhe parece, Frank? Já agora, lá está você com o halo outra vez. Voltou. parece mesmo um idiota." 

(...)

- Não falámos muito sobre futebol americano - diz Herb, pensativo. Mostra-se agora tão são e ponderado como um velho sextante. 

- Pareceu-me que não lhe estava a apetecer muito, Herb. 

- Realmente agora parece insignificante, Frank. Dá realmente uma preparação muito insuficiente para a vida, como acabei por descobrir. 

- Mas eu diria que tem algumas lições para dar às pessoas que o jogaram. Perseverança. Trabalho de equipa. Camaradagem. Esse tipo de coisas. 

- Esqueça essa treta toda, Frank. Eu tenho o resto da vida à minha disposição, é só descobrir para quê. E tenho grandes planos. 0 desporto é apenas uma recordação. 

- Está a referir-se ao curso de Direito e isso tudo. 

Herb meneia a cabeça como um cangalheiro. 

- É isso mesmo. 

- Tem muita coragem, Herb. É preciso coragem para se ser o Herb, acho eu.

-Talvez - diz ele, reflectindo - Mas por vezes tenho medo, Frank. Digo-lhe já. Um medo de morte."

E é o mais fundo que se entra no mundo desportivo. Para além duma alusão, noutro lado, à necessidade dos atletas de competição terem de estar "focados" no seu trabalho, com prejuízo da sua "humanidade" e da sua percepção da realidade: "(Um atleta ) provavelmente nunca sentirá a divisão dentro de si, ou a alienação, ou um pouco que seja de temor existencial... Anos de treino atlético ensinaram-lhe isso; a necessidade de abandonar a dúvida e a ambiguidade e o auto-questionamento, a favor duma agradável e conquistadora unidimensionalidade que tem uma recompensa instantânea no desporto.'' Em Herb, desse ponto de vista, a sua desgraça foi também ocasião dum verdadeiro renascimento como pessoa.

A vida de Frank Bascombe, a morte do primeiro filho e o divórcio que se seguiu de "X" (esta letra, em vez do nome da sua mulher, deixa pairar o anonimato sobre a personagem, como se qualquer personalidade servisse para o propósito), não é isenta de tragédia, mas isso, ao contrário de Herb, não o impede de "trabalhar", neste caso, de observar os outros com uma notável acutilância, o que mais tarde lhe permitirá voltar ao ofício da escrita a sério.

O "Jornalista Desportivo" ("The Sportswriter") faz parte duma tetralogia que inclui "Independence Day" - prémio Pullitzer -, "The Lay of the Land" e "Let Me Be Frank With You".

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