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01/10/18

NO CORRER DOS DIAS

marques da silva



Passaram os anos e fui guardando os factos num lugar escondido da memória e só hoje perante a profundeza infinita do teu olhar consigo libertar as palavras há longo tempo contidas. Esse dia primeiro em que se alumiou toda uma vida, recordo com a precisão do presente. Era o mês de Julho de um ano inesquecível, imperecível no lento rodar da história. Regressávamos ao encontro da pátria, que vivia essa época de sonho e da loucura inebriante da liberdade, essa Primavera de todos os voos, da floração intensa de um jardim escondido na alma de quase todos nós. Havia um mar de alegria a encher-se e regressava para mergulhar nessas águas límpidas do sonho. Voávamos sobre os Cárpatos a dez mil metros de altitude quando chegou a notícia que nos imobilizou o pensamento. Os militares gregos na sua estúpida bestialidade golpearam a ilha de Chipre, destituindo o arcebispo Makários, alimentando a voracidade da máquina de guerra turca a invadir aquele território onde no sossego de uma natureza cativante, duas comunidades conviviam secularmente. Quando foi possível parar toda aquela demência, um muro erguia-se de uma ponta à outra, com as populações abandonando as suas casas, as suas terras, os seus bens, o convívio que acompanhava a sua vida desde a nascença, as lágrimas de raiva e desespero de quem perdia tudo. Ficou a ilha purificada de duas gentes, cada uma com o seu Deus e na sombra deste desvario, o Reino Unido a ocupar dez por cento do território, com as suas bases militares, os seus deuses guerreiros, as suas verdades tão impuras quanto mentirosas, embrulhadas num manto snobe e diabólico de uma certa fleuma. Um muro nascia na Europa, uma parede que se estendia divisória e ainda permanece sem perturbar as mentes do poder de um Continente que persiste em viver num engano programado para o bem daqueles sobre quem repousa o mando e o lucro de uma democracia. Foi então que me ocorreu questionar de onde sou, quando nasci e em que tempo vivi. Agora que encontro no teu olhar esse fascínio atraente do que é puro, compreendo que não sou de tempo nenhum e ao mesmo tempo, sou de todo o lado e de todas as épocas, vivendo os padecimentos da humanidade que se flagela periodicamente, fazendo sobressair a cada momento, o espelho perverso onde se aloja o pior da sua alma. Foi um acaso que me levou à Irlanda naquele dia medonho que todos conhecemos como a «matança da Páscoa», com as armas de novo a fazerem sobressair os seus sons, as suas vozes, as suas maldades com o cortejo de crimes que sempre abrigam. A Irlanda dividida, separada como um corpo sem um dos seus órgãos. Aqui era o mesmo Deus a separar as almas, mas presente de novo, o Reino Unido e a sua democracia e lá persiste um outro muro, escuro e silencioso, a separar Derry, Belfast, a fazer viver duas Irlandas, a desunir um território, um país, uma nação. Sobre as ruínas da Europa, os judeus sobressaíam de novo, agora como vítimas e elevando-se ao pedestal de únicas, especiais e chamando sobre si os louvores universais, recusando que as lágrimas dos sobreviventes cobrissem também o horror e o delírio fanático que fizeram perecer mais cinquenta milhões de seres humanos. Mas os seus mitos, as suas alucinações religiosas, depressa mostraram que as vítimas privilegiadas, escondiam dentro de si, os mesmos sentimentos de maldade e de violência dos carrascos acabados de tombar. Não estiveste em Deir Yassim, caso contrário ainda escutarias os gritos, o choro, o estupor estampado no rosto, das mulheres e crianças devastados pelo fogo cobarde e criminoso dos judeus que se auto-inaltecem como vítimas. Afinal, eram tão bons carrascos como aqueles que a Europa tinha derrubado e condenado. O Deus dos judeus conquistava território, destruía aldeias, arrasadas a buldózer para desaparecem da face da terra e não serem mais do que um lugar arqueológico, os barris carregados de pólvora a rolarem pelas colinas e a rebentarem nas aldeias, a destruição das laranjeiras e das oliveiras. Assim chegou o tempo da Catástrofe, essa Nakba que a humanidade não pode olvidar, mas esquece, ou mais maldoso ainda, ignora, como se nunca tivesse existido, como se as lágrimas, os gritos, o horror, o espanto, não continuassem a percorrer as montanhas drusas, o vale de Bekaa, as terras de Belém e de Nazaré, o espaço milenar palestiniano. Persiste um sono interrompido todas as noites por esse clamor lancinante que sobrevoa o deserto. O Deus dos judeus, triunfante e único ergueu um muro onde nunca outro existira, voltava a separar o que era único e ali persiste para vergonha da humanidade a alimentar a impunidade dos judeus e como ave predadora por cima da catástrofe percebe-se de novo o Reino Unido a força armada ocupante que permitiu aos judeus iniciar setenta anos de puro terrorismo, de extermínio lento de um povo. São muros atrás de muros, perante a nossa impotência, a nossa passividade, o nosso silêncio. E é o silêncio que me faz lembrar a travessia de Salang. Olha para mim, deixa-me penetrar nesse teu olhar para que a memória não se perca e a emoção não me turve a voz. Do silêncio de Salang preciso de um dia inteiro para te contar, da montanha nua, da rudeza da paisagem, da pobreza secular, do medo que se apodera da nossa alma. Hoje prefiro lembrar os jardins de rosas de Jalalabad. Cercados, meses sitiados por essa turba de gente armada e benzida pela democracia americana. Quase sempre faltava tudo, mas resistíamos, sentíamos esse sabor da liberdade a cada dia que passava. No exterior, as seitas fanáticas que gritavam Allahu Akbar, erguiam-se como polvos cujos tentáculos não alcançavam a nossa determinação, mas amontoavam-se ruínas, novas lágrimas a acumular a todas aquelas já derramadas. Mas todas as manhãs quando o sol nascia, brilhando com a humidade nocturna, os jardins de rosas persistiam em florir. Jalalabad não se rendeu, mas foi traída. Entraram no seu corpo com a sanha vingativa dos miseráveis e golpearam tudo o que era vivo e só nesse dia as rosas nas suas tonalidades cromáticas morreram sufocadas por tanta sede, não de água, mas de paz, de silêncio, de serenidade e da ternura das mãos que todos os dias as confortavam com as gotas de água que tanto escasseava. Milénios de combates, de maldades, de massacres, de ganâncias e avarezas, tem sido assim a vida humana, e os teus olhos onde navegam as minhas caravelas descobridoras, perguntam-me se ainda acredito na humanidade. Não sei. Lembro-me apenas de um verão tórrido e incendiário em terras australianas. No fim, quando as árvores e a terra ainda fumegavam, um bombeiro exausto e com o rosto enegrecido, depara com um coala sobrevivente. Com uma garrafa de água, amparando o pequeno animal com uma mão permite que durante longo tempo sacie a sede. Não sei, talvez escondida na alma humana, ainda haja uma réstia de esperança.

Após a Revolução de Abril, soletrava-se pelo país os sons de uma canção que nos lembrava, «uma criança dizia, dizia, quando for grande não vou combater». Era a vontade expressa de nos afastarmos dos tambores da guerra. Um país que não tem inimigos, com fronteiras estáveis, manifestava o desejo que a aquela que tinha findado, seria a última das nossas guerras. Mas o poder, «os mordomos do universo todo» possui demasiados guerreiros, sobretudo daqueles que mandam os filhos dos outros combater. Assim, acabaram com o serviço militar obrigatório e passaram a contratar soldados. São agora contratados que vão guerrear para o Mali, a República Centro Africana, o Kosovo, o Afeganistão, a Lituânia, derreter milhões de euros do dinheiro que falta na Saúde, na Educação, no desenvolvimento do país, e há dias, o primeiro-ministro de um governo que se quis de esperança, que não tem dinheiro para pagar aos professores nem para que o orçamento da cultura alcance os 1%, disponibilizou-se para aumentar o orçamento da guerra até aos 2%, para que a NATO prossiga as suas campanhas de provocações militares e de matanças gerais pelas diversas partes da Europa, da África e da Ásia. Não contente, o primeiro-ministro justificou a sua decisão com uma blasfémia: “Cada euro investido passará a valer por três porque reforçaremos a Defesa nacional, o sistema científico e o tecido industrial”, quer dizer, o desenvolvimento da nossa indústria e da nossa ciência ao serviço da guerra. Talvez não mereçamos melhor!


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