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01/09/12

MISERÁVEIS

Alcino Silva








Será certamente um lugar-comum escrever que a sociedade humana é complexa, tanto pela diversidade dos seres que a compõe como pela diferença dos interesses que os movem. Essencialmente a partir do momento em que os grupos humanos se sedentarizaram, criaram raízes e ergueram estruturas, essa complexidade ampliou-se e teceu os fios de conflitos que não mais deixaram de se acentuar. Ao mesmo tempo que organizava a vida em comum em espaços e territórios definidos, criava disposições que separavam com clareza os que se encontravam na posse dos bens e os termos em que os restantes podiam usufruir dos mesmos. Nos momentos da história em que os avanços do conhecimento e o domínio do saber impuseram, exigiram uma fractura na sociedade, ao nível da economia e da política, a estrutura organizacional da comunidade alterou-se e mudou de certa forma a relação entre os detentores do poder e os restantes. A cada nova mudança, os direitos dos últimos evoluíam de forma positiva, mas o poder não mudava de grupo, modificava-se apenas a relação entre ambos, existindo direitos que passaram a papel escrito, pese embora nem sempre, ou muitas vezes, não se cumprirem. Na última grande mudança histórica, as relações sociais voltaram a sofrer alterações e nos últimos cem anos o grupo desapossado, adquiriu capacidades de cidadania como antes a história não conhecera, mas o essencial manteve-se inalterável, o poder permanece na posse de um grupo restrito de pessoas que dele usufrui nos termos que decide e condiciona a vida dos restantes de acordo com esse seu interesse. O desejo mais legítimo de um ser humano consciente das suas responsabilidades e deveres é que a sua relação com os outros assente um dia numa democracia que seja uma forma superior de organização social, onde os interesses divergentes se coadunem com o dever colectivo e prevaleça esse princípio imutável de que a liberdade de cada um termina onde começa a dos outros. Por enquanto, nesta sociedade de fingimento em que vivemos, a democracia, como a definiu João Pedro Mésseder num dos seus últimos livros, não passa de um «regime que permite aos pobres escolher uma entre várias servidões». É verdade que muita gente séria exulta de alegria com a frase de Winston Churchill de que a democracia é o pior dos regimes, mas não há outro melhor, contentando-se assim, e na aparência definitivamente, com a frase desse aristocrata e conservador britânico que na vida nada fez que não fosse viver do trabalho dos outros. Mas nesta democracia de aparências e de interesses tão opostos é natural que cada grupo se organize para melhor se defender na repartição da riqueza. Em cada actividade assim acontece. Os trabalhadores unem-se em Sindicatos, os seus patrões em associações. Foi no interior desta necessidade que terá um dia nascido uma entidade denominada A.P.S.(1). Como é natural, sobretudo no tempo em que vivemos, para além de organizar princípios e normas comuns para os seus associados, procura servir-se do poder através de jogos de bajulação, de transferência de interesses, de traficâncias espúrias, para que os seus intentos saiam beneficiados de alguma forma e os seus lucros possam crescer sem qualquer contenção. Tem ainda como missão, essa ingrata tarefa de aparentar que negoceia com os representantes dos trabalhadores das suas associadas, um contrato de trabalho. Os sucessivos presidentes desta associação simulavam todos, aquele ar sério de gente acima de qualquer suspeita, rosto grave, fato a condizer, de preferência de marca que não deixe dúvidas quanto à diferença de nível, distanciamento no falar. Extraindo este visual, em quase todos eles, interiormente sente-se essa ausência de dignidade que caracteriza aqueles que a tudo se ajustam em nome da sua narcísica ambição. Mas a última escolha teve de ser apurada, para corresponder aos sinais do tempo. Num momento em que se vive um criminoso processo de concentração e acumulação de capital com origem na injusta apropriação da mais-valia, na exploração, roubo empobrecimento e miséria dos povos e das nações, num tempo em que se apregoa a necessidade de despedir como forma de criar emprego ou de reduzir o salário mínimo como forma de combater o desemprego houve a necessidade de nomear alguém que se encontrasse à altura e sobretudo sem escrúpulos para abraçar este desafio. Certamente pelos seus imensos méritos, foi apresentado como homem credível no sector, elemento mais que abonatório para o lugar, pois se há algo que devem vestir as criaturas do poder, é a credibilidade, sentimo-la no bafo quando se aproximam, vêmo-la gotejar nas pequenas partículas de água que lhes afagam o rosto naqueles momentos em que têm de tomar decisões que passam por algo parecido com competência, atributo que os perturba, os enerva, pois com dificuldade distinguem a estupidez da inteligência, mas escrevia sobre os seus extensos e amplíssimos méritos, foi designada essa figura ímpar essa criatura entre o entroncado e o gordito, com o colarinho da camisa a aparecer como elo estrangulador da garganta, deixando a entender que a qualquer momento, a cabeça se vai separar do resto, isto naquela admissão ingénua de que o resto tenha cabeça. Figura de longo percurso, dessas caminhadas que, como eles dizem foram feitas a pulso, o que quase sempre quer dizer com pés e mãos sobre os outros, abraçou o lugar e essa missão de transformar as relações laborais numa mistura de sujeição e servidão. Percebeu ou disseram-lhe, certamente disseram-lhe pois não tem muito cara de quem entende seja o que for, que se vive o momento certo para destruir o equilíbrio desejável em democracia, regulador da diferença de interesses no interior do mesmo espaço. A este anafado Pedrinho pouco interessou as questões de organização nas empresas, apenas lhe tocava na mente esse desejo que há vinte anos atrás procurou impor aos trabalhadores da empresa que acreditava dirigir, se encontrassem disponíveis, como ele, vinte e quatro horas por dia. Foi este bombeiro que na mesa de negociações rasgou tudo o que pudesse assemelhar consenso e certamente com o sopro da vontade dos que lhe pagam requisitou a ajuda de um petit guru sindical, o qual, sabe-se lá a que preço, se disponibilizou para esse assalto infame aos direitos daqueles que são os verdadeiros e únicos criadores de riqueza. Consumado o esbulho, sentindo escorrer uma baba gordurosa de prazer, nessa alegria que a impunidade concede aos tolos, saíram ambos, o inefável economista e o petit guru, para a estrada para mostrarem que o roubo que tinham acabado de produzir de comum acordo era um manancial de bondade da parte patronal e para aqueles relapsos que pudessem ter dúvidas, traziam no forro do casaco um prémio para atrair as almas. Habituado a construir o seu mundo na mentira, pensava certamente que podia apregoar a intrujice como banalidade e que todos o acreditariam. No entanto, iludiu-se o Pedrinho e quando lhe chamaram o que sempre foi, aldrabão, remeteu-se cobardemente ao curral de onde tinha saído, com orelhas baixas e palavra mansa. Há instantes na vida que nem a gordura nem o tamanho tornam grandes as criaturas, os actos que realizam mostram-nos a sua verdadeira dimensão. Este Pedrito faz parte dessa insigne malta que enriqueceu fazendo mergulhar o país na miséria e acredita que o mundo obsceno que defende terá uma vivência milenar, mas não passa de um George Willis Jr. da sua actividade(2). Vai ver que se ilude, pois cada vez mais se sente no ar essa pergunta romana de «até quando vais tu, Catilina, abusar da nossa paciência?». Percebe-se no ambiente de euforia deste Pedrinho que se sente como alguém que acaba de saltar de um avião sem para-quedas e acredita que vai aterrar incólume ao som do Hino da Alegria de Beethoven. Vai ver que se engana e quando pensar que vai começar a 9ª sinfonia, há-de rebentar-lhe nas ventas o Dies Irae, do Requiem de Mozart. 


(1) A.P.S. – sigla de Associação dos Portugueses Safados. Safados não deve ser entendido como sinónimo de apagados, esquecidos, ignorados, mas antes de safadeza ou malvadez.

(2) – Acredito que este Pedrocas não é criatura de ver filmes, prefere ver apenas aquele que ele próprio realiza e no qual aparece como actor principal, mas se um dia se dispuser a espreitar “Perfume de Mulher”, vai ver que facilmente descobrirá esta personagem.

Importa referir que o que acima se escreveu é ficção e que se coincidir com a realidade é pura coincidência, embora se acredite que muita realidade se assemelha a ficção e não é coincidência nenhuma.

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