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01/09/12

SILLY SEASON

Mário Faria

"Les vacances de Monsieur Hulot" (Jacques Tati)



Final de agosto, uma semana de praia, indo para fora cá dentro. Como a maioria dos portugueses. Sem rota certa, apanhei um apartamento na zona de Albufeira, com fácil acesso à Praia da Falésia. Bom tempo, água fresca e muita gente, maioritariamente portugueses, embora no aldeamento que me acolheu haja muitos polacos, ao que apurei.

Na praia, os veraneantes ocupam o areal conforme o espaço que lhes é concedido pelo movimento das marés. Na preia mar, o espaço disponível para “montar casa” fica consideravelmente reduzido, e é uma correria para tomar os melhores lugares. E falo em casa porque é disso que se trata para muita gente. São guarda sois acima da meia dúzia para cobrir famílias que integram várias gerações ou para aqueles que exorbitam na procura da máxima comodidade: cadeiras, poltronas, camas, mesas, caixas térmicas, boias, baldes, pás, bolas, raquetes, livros, jornais, muitos ais (aifones, aipedes, aipodes), telemóveis, smartphones, stupidphones (todos os outros) e uma dúzia de toalhas dispostas para cobrir o máximo espaço, e posicionadas para quem da tribo procura o sol ou a sombra. O território é delineado e defendido, nem que tenha de ser a murro, como aconteceu há poucos dias. Uns procuravam espaço que não havia e outros não queriam reduzir um pouco do seu, para caberem todos. Palavra puxa palavra, da conversa grosseira passou para o insulto e depois e, por esta ordem, o empurrão, a chapada, o murro e puxões de cabelo. Não há registar mortes ou feridos. A intervenção da autoridade resolveu a questão de forma salomónica que não agradou às partes. Mas, foi assim que se tiveram de se aturar até que a oferta de mais espaço cresceu, pela debandada de alguns e porque a maré seguiu o seu rumo a caminho da baixa mar.

Foi um dia animado. É gente fina que naquela praia ocupa o centro, onde o evento ocorreu. As zonas limítrofes são ocupadas pelo turista tipo pé descalço. Férias para todos, cada qual no seu labirinto, perto mas não juntos, suficientemente separados em função da classe que uns pertencem e outros não representam. Cavaco passou por lá, em passo de atleta e protegido por dois guarda costas, num fim de tarde com o areal transformado num imenso campo de futebol, com espaço para dar e vender. Não havia queixas: o ambiente era lindo e a lua, quase cheia, brindou-nos com a sua presença ao fim do dia, suave e ameno: o sol não queimava, acariciava. Depois de um dia agitado, a calma e a serenidade voltaram. 

As gaivotas continuavam bem lá no alto, escondidas pelos relevos da falésia. Avisadas, permaneciam nas zonas inacessíveis ao bicho humano. Voavam muito alto, como pequenos aviões, como se temessem aproximar-se do pessoal que invadia o seu habitat e tomavam, provavelmente, como um perigo à sua existência. Nesse dia, uma delas chegou tão alto que parecia em rota de colisão com um avião que descia a caminho do aeroporto de Faro. Animadamente, continuou a presentear-nos com um bailado fascinante, que o brilho de sol exponenciou. 

Era tempo de voltar ao aldeamento. Fui para a piscina. Não podia deixar de assistir ao espectáculo que um casal polaco me proporcionava, todos os dias, à mesma hora. Soube que eram muito ricos e clientes regulares daquela estância. O homem teria uns sessenta anos, um metro e sessenta de altura, anafado, feições grosseiras, mesquinhas, tronco comprido, pernas curtas, mãos e pés sapudos, cara redonda com barba de um dia, cabelo cortado à sargento, nariz pequeno, orelhas grandes, e um olho de cada cor: um esverdeado e outro cinzento pardo. Corpo minuciosamente depilado, voz à Peter Lorre que se ouvia no seu inglês, quase indecifrável, nas parcas palavras que deixava fugir. Sempre deitado, movimentava-se para ir à piscina, para dar umas braçada, breves e rápidas. A companheira era bem diferente: mais nova, alta, muito direita, magra, elegante, passo firme, cara ligeiramente comprida de feições correctas, olhos azuis cor de mar, lábios grossos, cabelo que apanhava e escondia num chapéu panamá, nariz firme, que adensava um certo ar misterioso. Ao contrário do companheiro, não parava: mexia-se e deslocava-se dentro do aldeamento como se estivesse sempre ocupada. Lia, nadava, tinha sempre obra para fazer. Uma mulher de acção. A sua vitalidade contrastava com a sedentariedade do seu parceiro. Fiquei à espera. Pontualmente, levantou-se e massajou o companheiro com creme, desde a ponte dos cabelos às unhas dos pés. Fazia-o com uma dedicação e leveza impressionantes. Não lhe escapava nada. O corpo dele recebia com evidente prazer os movimentos daquelas mãos que tratavam o corpo do marmanjo, como o artista as teclas do seu piano. Rápido, rápido, lento, lento. A face era massajada com uma doçura impressionante, ritmo lento, lento, as costas, o peito, as pernas e os braços, num ritmo rápido, rápido. Até os dedos dos pés lhe mereciam a devida atenção. Que inveja. O tratamento demorava mais de meia hora. Seria fisioterapeuta? Ao que soube era a cabeça de um grupo económico que o companheiro formou, a preços de saldo com o regresso em força da economia privada à Polónia. Aquela mulher era uma espécie rara. Ainda explorei junto da minha mulher se era capaz de me dedicar um tratamento, próximo daquele. Respondeu-me, rudemente: “Era o que faltava. Não tens mãozinhas?”

A terra, concluí depois de lhe dar muitas voltas, não passava de uma ampla coligação determinada a aborrecer ou a surpreender toda a espécie de peregrinos que nela transita: tinha escolhos que não apareciam nos mapas e nas cartas, lugares estranhos, areia escaldante, marés vivas, falésias traiçoeiras, homens vulgares e misteriosos casais. Estava povoada, além disso, por uma multidão de turistas: funcionários, empreendedores, capitães, polícias, juízes, políticos, e homens e mulheres que se expunham a todos os perigos para defenderem o seu território e ficarem de pele morena, ao arrepio de todas as recomendações. Apesar de tudo, a silly season vive momentos recessivos e a loucura já não é o que era. Para o ano há mais. Não creio que as gaivotas estejam na disposição de se aproximarem. Os impostos, esses, não nos largarão, lamentavelmente.

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