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30/09/07

LIVROS, LEITURAS E UM POETA

Pablo Neruda (1904/1973)


Há livros que para mim são de leitura imprescindível, pelo que os adquiro mal aparecem nas livrarias. Por vezes, razões superiores provocam um ligeiro adiamento, mas adquiridos a leitura inicia-se de imediato. Este que vos venho aqui falar, não só não foi uma desilusão como, pelo contrário, excedeu em muito as minhas expectativas que já eram grandes. Primeiro, porque é da vida de um poeta que nos fala, depois porque esse poeta é Neruda e, por último, leva-nos à história do Chile no século XX e a sua ligação à Europa. Já conhecia um pouco do país do sul, mas dei comigo a procurar no atlas, lugares, cidades, regiões, a percorrer imaginariamente todo aquele país, desde Arica até à Terra do Fogo onde é quase inimaginável aceitar que ali se possa viver. O poeta nasceu no Sul, bem longe de Santiago, em terras indígenas da Araucânia, terra de autóctones despojados de identidade pelos colonizadores e quase se torna difícil imaginar o que seria percorrer 500 kms de comboio até Concepción e ainda mais para sul, para Temuco e Parral onde a infância de Neruda o ajudou a sonhar o mundo. Pensar em Porto Saavedra onde encontrava o mar em tempo de férias, é quase um acto de fantasia tão a sul nos encontramos. Foi ainda adolescente que iniciou a escrita poética sobre o ar reprovador do pai que nunca lhe perdoaria essa profissão indigna e lhe cortaria a mesada, facto que o levou a imensos dias de fome nas ruas de Santiago dos anos 20. Uma das suas obras mais emblemáticas é escrita nesta época quando pensava que o havia sido numa fase mais adiantada da vida. Albertina, a mulher de Temuco que nunca lhe disse sim, foi a responsável por aqueles “Vinte Poemas de Amor e Uma Canção Desesperada”. A sua vivência na Ásia nos anos 30 como cônsul quase toca o surrealismo, mas será na Espanha republicana que despertava em sonho e magia para a democracia que vai recolher muito do saber que lhe vai condicionar as escolhas para o resto da vida e mudar o tom da poesia. As suas amizades com Garcia Lorca e Rafael Alberti serão momentos decisivos, os quais juntamente com a violência da guerra civil e a barbárie fascista com o seu grito de Viva la Muerte, não deixarão de lhe seguir as reflexões e as suas decisões políticas.

Volodia Teitelboim seu amigo de sempre, ainda vivo, e autor da obra, numa escrita cristalina, pura, engrandece o tema, a vida e dimensiona o sonho para outras amplitudes, facto que me impele para citar algumas poucas, mas longas das palavras que escreveu como aquelas que descrevem a primeira experiência política do poeta como candidato a um cargo de senador por um círculo do norte, região paupérrima e mineira. Escreveu Volodia citando por vezes Neruda: «A inteligência dos poetas desde há tempos afastou toda a relação humana do que dizem e toda a cordialidade e amizade para com a mensagem poética e eles afastaram-se do Mundo, mas na verdade que outro objectivo há na poesia que não seja o de consolar e fazer sonhar? (…) a poesia deve encher-se com a substância universal, as paixões e as coisas. Isto quero eu fazer: uma poesia poética. Das minhas curiosidades científicas, da minha admiração pelos automóveis, da minha atracção por essa natureza exótica bem pouco fica quando à noite me ponho a escrever, sozinho, diante da folha de papel. Então, apenas existo com as minhas angústias, as minhas alegrias, as minhas paixões pessoais…». É pois este homem apaixonado que agrupa palavras que nos encantam e nos elevam a capacidade de sonhar que fica quase sem voz perante a multidão que se aglomera à sua frente com a esperança de consolo, de compreensão e vontade de justiça. Neruda não lhes vai falar como político, nem como homem, mas antes e apenas como o poeta que com a pena na mão grava cenários de justiça e de liberdade para a alma de homens fatigados. É ainda Volodia a descrever-nos esse momento: «A curva melódica da voz não experimentou a mais leve modificação. Mas depois de um breve tempo revelou-se como o ruído de águas lentas, como um sopro de ar diferente, não porque a mensagem que saía dessa garganta fosse cristalina e refrescante, mas porque o que diziam as suas palavras dava de beber a um espírito sedento um certo halo embriagador, criavam um clima envolvente, geravam uma atmosfera onde se divisava a luta de uma alma tempestuosa que falava de um mundo interior habitado por muitos fantasmas, evocava a aventura de um homem, a vida solitária e as viagens, falava da consciência e da linguagem, que não nos podia deixar tal como éramos antes de o escutarmos nesse recanto da galeria do Teatro Miraflores».

Do Chile possuo sempre a ideia de uma nação com os Andes a vigiá-la, de grandes alturas, as quais baixam de forma abrupta para que essa vigia não se perca e desses milhares de metros de altura, percorre-se o país de norte a sul até se desmoronar na Terra do Fogo em pleno Estreito de Magalhães onde neves eternas e um vento glacial paralisam a mente dos homens. Sempre olhei parar a cordilheira com aquele sabor com que a magia nos enche os sonhos de forma fantasiosa, fazendo renascer fantasmas e medos que se espalham por entre a virgindade de profundas florestas, pelo silêncio de gargantas escuras apertadas entre muralhas de rocha. Eleito senador, os seus discursos vão incomodar o poder, sobretudo o de um Presidente moral e eticamente miserável que o vai perseguir, tornar clandestino e obrigar a procurar o exílio. Só que a sua saída do Chile tem de fazer-se no maior dos segredos, por caminhos insondáveis e guiado por homens que chegamos a duvidar que existam. «Afirmou isso vinte e dois anos depois dos acontecimentos, quando teve de atravessar os Andes em busca dessa difícil fronteira. A reminiscência longínqua é um canto aos bosques do seu país, igualmente distante. Eram como túneis, onde não havia caminhos e tudo parecia inacessível, mas havia algo pior do que a existência de clareiras e carreiros: os cavaleiros tinham de abrir passagem por entre as árvores que eram como muralhas, através de rios quase infranqueáveis, por rochas cujas fissuras deviam encontrar, porque andavam em busca da liberdade. Mas mais importante que tudo isso, ou mais grave se se pode assim dizer, era o sentido da orientação. Precisavam de se guiar pelas indicações feitas nas árvores que assinalavam a rota invisível. É um mundo do verde e do silêncio, a Natureza virgem e adversa, onde a solidão se une à surpresa e ao perigo. E havia um outro opositor, a neve, que em certos lugares nunca se derrete de todo. Avançavam à força de golpes de machado, cortando ramos para fazer passar os corpos e os cavalos pelo meio das grandes coníferas e muitas delas serviam de túmulo aos viajantes que tombavam. A marca da sua passagem era os ramos cortados, mas também o perigo dos rios, que nesta região do Mundo são bem diferentes dos europeus. Nascem nos cumes dos Andes, caem em cascata a uma velocidade louca e arrastam tudo o que encontram na rápida passagem». Quando tudo parecia perdido acabou a passar a última noite numa estalagem existente no interior daquele mundo fantástico longe dos homens e das gentes. Adormeceu após um diálogo indescritível, para no dia seguinte já em plena Argentina voltar a ser um homem livre.

Andou pela Europa, pela França até que os anos fizeram esmorecer o poder desse miserável presidente e Neruda pôde regressar ao seu Chile de sempre. À sua chegada proferiu as palavras que só um poeta podia proferir, incentivando a que se olhe para a frente, sem ter de esquecer o que ficou para trás. «Cheguei sem condições, porque houve no meu regresso uma luta triunfante que se iniciou no momento em que saí do país. A história é a ciência do passado, mas a política não é a história. É a criação de novas fontes vitais para assegurar o cumprimento das esperanças do povo. Se estivermos voltados para trás, não poderemos avançar. O que não quer dizer que esqueçamos as coisas».

Muito mais tarde, voltará a esta reflexão sobre o olhar para a frente e para trás como só os poetas sabem fazer, agarrar o sol e a lua no mesmo instante. Será ainda pelas palavras do seu amigo Volodia que nos apercebemos disso: «Memorial de Isla Negra é um retorno à poesia sensorial e diversa, um regresso que nunca será igual ao tempo a que se volta, porque o tempo não tem regresso. Caminha sempre numa única direcção, para o futuro, e apenas se pode regressar pela memória e pelo coração. E é o que Neruda acaba por fazer. Mas trata-se de uma recriação algo diferente. O homem que celebra os seus sessenta anos pode recordar o jovem de dezoito, mas não pode voltar a ser o mesmo jovem».

Aos sessenta e cinco anos, entrevistado definirá o seu estilo de vida que só o engrandece como homem quando já era grande como poeta. «Não se pode ser feliz se não se luta pela felicidade dos outros. Nunca se pode abandonar o remorso de ter alguma coisa se os outros a não têm. O homem não pode ser uma ilha feliz. Não é esta naturalmente toda a minha filosofia, mas é o mais importante dela».

Nas últimas páginas lidas sou surpreendido por uma notícia que não conhecia. Neruda conheceu Matilde nos finais da década de 40 e foi a sua companheira para os restantes 25 anos da sua vida. O Poeta gostava muito desta mulher e nunca deixou de a amar. Matilde retribui-lhe essa amizade apaixonada. Mas Neruda era um poeta e como todos os homens que brincam com as palavras como uma dança nupcial, apaixonava-se pela ternura das mulheres até que um dia já nos seus anos finais é surpreendido por Matilde em volta de uma mulher silenciosa que povoava a sua casa na Isla Negra. Esta mulher que o honrou até ao fim da vida, irritou-se e Neruda deixa o Chile como forma de quebrar essa corrente que o puxava para actos de arrebatamento apaixonado. O seu companheiro e amigo que agora lhe descreve a vida relata pormenores, agora que Matilde morreu e a sua memória já não pode ser manchada. Utiliza essa frase que tantas vezes repito de não misturarmos fidelidade e lealdade: «Como diz o seu amigo Garcia Marquez, não se deve confundir a fidelidade com a lealdade. Neruda foi sempre leal a Matilde, mas não lhe foi sempre fiel e regeu-se por esse princípio em todos os casamentos».

Perdoem-me esta longa missiva, mas tinha de partilhar com alguém este amor pela leitura, ainda para mais a que relata a vida de um poeta do século XX, Prémio Nobel da Literatura. Não esqueçamos que o Chile teve dois desses laureados e ambos eram poetas. O outro foi uma mulher que encontrou na sua adolescência e dava pelo nome de Gabriela Mistral. Termino com uma interrogação sem resposta. Como pode um país tão fantástico, tão pleno de uma natureza que impele os seres humanos a amar que nos enche a alma de sonhos que acariciam o desejo de viagens, pode ter visto nascer, viver e matar essa bestialidade de militares que assassinaram 30.000 dos seus compatriotas, entre torturas, corpos lançados ao Pacífico ou enterrados em valas comuns em locais desconhecidos?

Alcino Silva

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