Liinarramari, Península de Kola. O caminho para os sonhos
parece-se demasiado com a vida, a qualquer instante muda o rumo da jornada e
torna-se mais distante o destino. E neste deslizar da bússola, procuramos não
ficar retidos na surpresa, mas antes avivar a arte de viver e de sonhar, perante
as novas coordenadas. Foi assim que, pensando o oposto, não abandonei o
Árctico, pese embora a mudança de lugar que me trouxe a esta aldeia perdida no
globo, de escassos habitantes, mas de continuada posição estratégica. Já foi
espaço fechado enquanto base de submarinos. Hoje só lhe restam patrulheiros e
barcos de pesca. Ao que parece, sendo um porto que nunca gela, conheceu vários
ocupantes e já mudou de país. Poucos quilómetros a norte, numa reentrância da
costa que quase forma uma ilha, surge-nos uma outra aldeia dedicada à pesca
tradicional e submarina. Com caminhos terrestres que nos deixam ainda longe da
pequena enseada, procuro veredas e bocados de terra entre a pedra para evitar
seguir pelo mar. Neste recanto, o sossego é ainda mais elevado e por ali vivo
entre silêncios e os pequenos ruídos que chegam diluídos no respirar do mar. As
horas passam, mas não sentimos que nos leve o corpo. Permitindo que o
pensamento repouse em reflexões prolongadas, vejo que entre as imagens, o mundo
aparece no estertor da decência e da humanidade. Ao recordar o que chamas de ética
ou moral, verifico como o sentido de tais palavras aparece agora tão distante e
incompreendido, tão esfarrapado, na mente e nas acções dos psicopatas que
alcançam o poder para semear a barbárie e a sua insânia demencial. Como afirma
Lídia Jorge numa recente entrevista, “Calcem as galochas. Vamos Atravessar a
lama”. Estamos enlameados, não por um acto voluntário, mas por terem-nos
empurrado para um pântano. Quis acreditar que me visitarias como em tantas
ocasiões ocorreu, mas compreendi que neste lugar, só o silêncio me pode fazer
companhia. Unamuno, descreveu numa das suas viagens, um momento de fraqueza da
sua alma quando no mesmo instante em que sentiu a necessidade da presença de um
amigo para compartilhar o sentimento emocional que de si se apoderou, logo
rejeitou a ideia, dizendo, “Viajar em companhia de alguém não é viajar
porque tira a viagem o seu mais íntimo encanto: a solidão. Não conhecer
ninguém, não ser conhecido”. Mas que fazer quando num destes silêncios a
nossa alma tem uma recaída? Não o
silêncio, mas os silêncios que me ensinaste a escutar quando um dia paramos no deslumbramento
da meditação nas montanhas azuis. O silêncio da manhã é primaveril,
transportando o sol nascente, o canto das aves, a alegria da vida; o da tarde
aparece carregado de melancolia, de saudade, aproximando-nos do declínio do dia;
o da noite é um silêncio sonhador, povoado de luzes estelares, das danças
galaxiais e aqui, da fantasia das auroras boreais. Vivo entre estes silêncios e
há dias, num desses momentos de devaneio, alguém se aproximou e perguntou o que
fazia ou procurava no isolamento deste espaço. Respondi com a palavra que por
aqui aprendi: любоваться, a ideia de olhar em admiração, expandir o pensamento
ou o sonho para além do que é visível, perder-nos em lugares imaginados
cobertos de mistério. Neste final de tarde, o postal que te envio, brinca entre
os meus dedos sem conseguir decidir que palavras lhe hei-de desenhar, se um
esboço do que vejo ou antes do que sinto e se desamarra numa tempestade de
alienação por entre as areias que amamos e tantas vezes percorremos. Por muito
que insista em concentrar as ideias presentes nos contornos destas enseadas e
colinas rochosas, algo me arrasta para uma realidade que não consigo entender e
que Lídia Jorge, sintetiza desta forma, “Às vezes custa-me adormecer. Quer
dizer, como é que eu tenho água? Como é que eu tenho lume? Como é que eu tenho
comida? Como é que eu desperdiço todos os dias um bocado de pão? E aquela gente
está assim? Isto é um horror.” Tento sair deste desfiladeiro infernal que quase
nos esmaga o cérebro, procurando no tempo passagens em que um naco de beleza
nos fez respirar a alma, recordando quando nas areias de khorramshahr, nas
margens do Chatt-el-Arab onde se perdem as águas do Tigre e do Eufrates, ainda
deslumbrados pela visita à tumba de Ciro em Pasárgada, num momento de grande
melancolia recitamos em simultâneo o poema em que aparece a frase tão cativante,
“Se tu viesses ver-me hoje à tardinha, a essa hora dos mágicos cansaços”.
Fecho a tarde e prossigo a minha viagem para Ítaca. O postal segue em breve.
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