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01/08/22

A GREVE

António Mesquita




As imagens admiráveis de “A Greve” desfilam diante duns olhos sem ilusões. Não importa, o prazer permanece intacto. Mas tal como em “Outubro”, uma palavra me vem à ideia: má-fé. Os processos formais para despertar o sentimento de classe raiam o desprezo da verdade. 

O Eisenstein desse tempo havia de rir-se destes escrúpulos. O soldado a cavalo não esmaga, largando-a sobre o pátio, uma criança anónima, mas o anjo adorável que brincava em casa do operário em greve. E que dizer da caricatura dos patrões, como a de Kerenski no filme da Revolução? No entanto, não é a indignação ou o desprezo que nos inspiram esses traços. Porque têm a beleza das máscaras antigas e das personagens da ópera. Por que havemos de pensar em termos de realismo quando visivelmente o autor disso troçava?

Reduzir os conflitos pessoais à acção de forças sociais manobradas como torrentes de música sinfónica, no meio do que surge, inesperadamente, o brilho solitário dum metal, eis a sua arte. “Com a Greve, temos o primeiro exemplo de arte revolucionária em que a forma se mostra mais revolucionária que o conteúdo”, citação do próprio cineasta. Mas não foi sempre assim? Quero dizer, a inovação formal é uma revolução dentro da arte, mesmo se o conteúdo permanece o mesmo aparentemente. Digo isto porque na realidade também o conteúdo muda, ao mostrar-se de outra forma ou ao ser percebido doutra maneira. 

Mas nem sequer está aí a grandeza do filme. Outro diria com a mesma técnica de montagem e igual concepção ideológica algo que não valeria a memória. Os rostos sujos e viris, a nudez dos sentimentos, a luz de Tissé, o tempo das imagens, formam um concerto único, irredutivelmente subjectivo, em que a marca do artista não deixa nenhum espaço ao reflexo do real e à verdade objectiva. 

Não faltam os tolos que se enganam no partido de Eisenstein. A história não vale nada. O que vale é o contar. A arte não é livre assim. O sentido do drama não podia ser arbitrário porque a língua e a cultura, fosse ela de direita ou de esquerda, o não consentiriam. Simplesmente, para dizer o contrário devíamos demorar na alma burguesa e reduzir a greve e os operários a uma abstracção. Não era preciso que os donos da fábrica fossem gordos, bebessem, vestissem smoking e fumassem charuto, nem que limpassem o sapato à folha das reivindicações. Mas então os operários deviam ser pessoas e não figuras da massa coral. 

A unidade da obra exigia esse contraponto do colectivo proletário e do individual burguês. Depois, há uma criança que se vai tornar na vítima ideal da brutalidade da polícia. Um operário que se enforca. É o nome da revolta, como no “Couraçado Potemkine”. E o quarto desarrumado do homem em casa. Aí o operário é isolado necessariamente, mas para viver o mesmo drama dos outros camaradas. Para realçar no conflito doméstico a força da unidade de classe.

Michel Meyer diz que a ideologia se diferencia da propaganda por a primeira pretender ter resposta a todas as questões e a segunda estimar que nem sequer há questões.

É óbvio que o filme de Eisenstein não é uma coisa nem outra. Tem de ser lido  referindo-nos à história e à linguagem do cinema. Nenhum filme mudo ("A Greve" é de 1925) pode antecipar o realismo psicológico. Os heróis de "A Greve" têm mais a ver com a personagem do Charlot desses anos do que com os operários do neo-realismo itialiano.

Mas, de facto, o filme responde a todas as questões que uma obra de arte pode suscitar.




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