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01/02/22

NO CORRER DOS DIAS

Marques da Silva





Num primeiro momento sentimos a profundidade do silêncio, um desses silêncios que se seguem às tragédias, sem sons, imóvel, como se nos colocasse num vazio para nos deixar tempo para recuperarmos do choque e regressarmos de novo à realidade envolvente. Mas aqui parece persistir quando o olhar se move, primeiro para a direita em direcção ao túmulo real, à beleza escultural do sarcófago, trabalho exímio dos artesãos medievais. De seguida, o olhar ergue-se e viaja, irrompe pela totalidade da nave e é como se entrássemos numa abóboda estelar, plena de luz, de elegância, de graciosidade eterna, em que sentimos vacilar a razão, o sentido da proporcionalidade em que existimos. Quando esse olhar desce para a esquerda, encontra outro túmulo carregado de serenidade simbólica, no repouso da rainha que o foi depois de morta. Tudo parece certo e perfeito e quando voltamos para o espaço majestoso da nave, do equilíbrio das suas colunas robustas, da amplitude das suas ogivas, é o momento em que o canto penetra devagarinho, quase silencioso nessa suavidade que nos traz a alegria contida dos sorrisos que só nós percebemos. É a música humana erguida ao divino, do mundo profano para o sagrado que prosternava os monges que por ali ciliciavam na humildade da vida e na carência dos pobres. Talvez naquela época, pois o canto há muito se silenciou, chegasse também de longe, do outro lado do Tejo, uma outra melodia saída da garganta humana de um muezim, dirigida a um outro Deus, ou que os Homens acreditassem ser outro, sem contudo, deixar de ser a mesma imagem imaginária e simbólica a quem erguiam as suas preces como elementos cativantes de um futuro para além da morte. E como seria a vida sem esse conforto do espírito poder acreditar que tem um lugar no porvir como contraponto à ideia de um vazio perpétuo! Pese embora o tempo passado, nenhum dos cantos findou, pois escutamo-los plenamente quando o olhar regressou à luminosidade branca e transparente que penetrava naquela nave altaneira e bela na simplicidade da arte gótica. De um lado, chamavam à oração, do outro, rezavam cantando, aos deuses, à humanidade, à vida e a tudo o que compõe essa natureza onde sobrevive a alma humana. Padecia o corpo para a felicidade da alma. Também nós deixamos o olhar seguir essa viagem do canto, enlevados na contemplação do que tem sido o rio da vida a correr ao longo da História. Cister ergueu-se para recuperar os valores originais perdidos pelos que seguiam a Regra de S. Bento. Bernardo de Claraval funda a Abadia que irá recolher os seus seguidores na dureza da penitência e humildade como serviço prestado a Deus. Chegarão ao reino que se formava no oeste da Ibéria. Primeiro a Tarouca e, de seguida, Afonso, o primeiro, o príncipe que aspirou e alcançou ser rei, generoso, concedeu-lhes terras ao ritmo que expulsava as populações árabes e muçulmanas e ignorava os cristãos que nessas terras permaneceram. Para povoamento e cristianização alojou-os nas margens do Alcoa e assim viria a nascer esta estrutura gótica por onde agora peregrina o nosso olhar observador e extasiado. A luz penetra ávida, mas sem a grandeza dos vitrais multicolores que a simplicidade cisterciense não desejou. Não abrigou apenas os monges no seu labor penitente, recolheu ainda os corpos sem vida de reis e rainhas que ali se quedaram para vivência perene, mas de todos, um par se distingue que acrescenta a este espaço arquitectónico uma aura de romance, uma pequena ideia de Taj Mahal, um namoro real embelezado pelo tempo e mitificado pela alma humana. Os corpos de Pedro e Inês, ainda que maltratados pelas tropas invasoras de Napoleão, ali repousam de ambos os lados do transepto sul, de frente um para o outro para se um dia acordarem do sono imortal, ao erguerem-se, se possam olhar de frente e usufruírem do sentimento amoroso que lhes negou em vida, esse truculento Afonso, quarto na nomenclatura real, que combateu o pai antes de ser rei e viria a combater o filho já no fim do seu reinado. Enquanto os monges, povoavam, arroteavam e serviam a Deus, os mestres canteiros somavam pedra a pedra em elevação aos céus o espaço sagrado onde os humanos comunicavam com o divino, e no presente, se estivermos atentos, podemos ainda escutar os sons dessa liturgia humana enquanto procurava a salvação. É tempo do nosso olhar descer as poderosas colunas que suportam as naves, deixar-se de novo envolver pelo silêncio encantatório que encontramos na entrada e regressarmos aos sons da vida, aquela que ainda podemos viver.

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