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01/01/22

NEM-NEM

António Mesquita




Uma excelente série francesa "Les Sauvages",   de Rebecca Zlotowski, em que a comunidade de raiz magrebina se debate com o fenómeno da exclusão e do terrorismo. As eleições presidenciais dão a vitória ao candidato Chouach  (um antigo professor de economia em Harvard), dessa origem. Um atentado, perpetrado por um jovem músico de 18 anos, põe a sua vida em perigo, e até ao fim o desfecho é incerto por causa da agitação política e da iminência de novo atentado. Chouach que se candidatou a pensar na nova geração e numa plena integração na sociedade francesa, encontra-se,  na prisão, com o jovem terrorista, numa tentativa de compreender os seus móbiles. O rapaz, sem se explicar, acaba, logo a seguir por cometer suicídio.

Chouach, finalmente, liberto dos entraves a que o seu estado clínico serviu de pretexto no mundo político, pôde fazer um discurso fora da norma na sua tomada de posse. Disse que a nação tinha que viver com a vergonha dos seus maus passos, sendo a colonização e a guerra da Argélia um deles. Que não se pode fazer com que as atrocidades e a injustiça social não façam parte dela mesma. Que as comunidades imigrantes tampouco podem apagar o seu passado e a sua quota-parte na violência, mesmo que esta se entenda como uma resposta política. No fundo a sociedade francesa não pode viver sem esses que consideram, a maior parte das vezes  só pela cor da pele, ser tratados como cidadãos de segunda, nem pode viver com eles de modo a satisfazer a verdadeira igualdade e a justiça. 

Esta reflexão é o mais actual possível, no momento em que decorre o julgamento, em Paris, dos autores do massacre do Bataclan, em Novembro de 2015. O peso da comunidade árabe agrava as tensões sociais que ganham contornos de guerra religiosa.

As palavras de Chouach representam uma espécie de impasse que corresponde ao sentimento da nação. Reconhecer que não há soluções milagrosas, nem programas políticos à altura do problema - terreno fértil para a campanha de especulação irracional dum Zemmour - talvez seja um primeiro passo na direcção certa. Como explica Michel Serres, falando da situação triangular: duas diferenças, localmente irredutíveis, são levadas à semelhança por um ponto de vista exterior. É útil ou necessário aqui que o vocábulo medida tenha guardado, na tradição, pelo menos dois sentidos, o da geometria e o da não-desmedida, da não-violência e da paz. Estes dois sentidos recobrem uma situação parecida e uma operação idêntica." ("A origem da Geometria")

Um presidente "magrebino" e que louvasse no seu "Allah Akbar" uma qualquer superioridade religiosa não teria lugar em França. Mas é como herdeiro da cultura deste grande país que poderia desempenhar um papel que não se afigura viável nos próximos tempos. A presidência de Obama não pôs fim às tensões raciais nos E.U.A., mas fez mais pela integração dos negros americanos do que uma centena de discursos. É verdade que o seu caso não envolve a extrema complexidade duma religião militante, como a hipótese Chouach.

Cito o artigo de Emmanuel Carrère no "Observateur": "Dois anos depois dos atentados,  Georges Salines, cuja filha, Lola, foi morta no Bataclan, recebeu de  Azdyne Amimour (pai de um dos djihadistas) uma carta dizendo : 'Desejo  conversar consigo sobre este acontecimento trágico porque eu próprio me sinto uma vítima por causa do meu filho.' O pedido fez, primeiro, Salines interrogar-se, mas acabou por aceitar. Uma amizade se entreteceu que levou a um livro a duas vozes,  'Il nous reste les mots' . Dois pais enlutados falam-se,  o filho de um deles talvez tenha disparado a bala que matou a filha do outro. Lendo o seu diálogo, perguntamo-nos: não é mais terrível ainda ter um filho assassino do que uma filha assassinada? Esta questão vertiginosa, tenho a impressão que é sobretudo Salines que a coloca a si próprio. Outras se precipitam de seguida: será que no lugar do seu interlocutor teria feito melhor?Teria conseguido parar o seu filho no caminho do desastre? Com que palavras, com que actos? E eu, se os meus filhos ou a minha filha...? Não sei, ninguém sabe. (...)"

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