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01/04/20

A HERANÇA DO DOUTOR GUILLOTIN (*)


António Mesquita



                                           


A propósito do filme "Os Miseráveis", de Ladj Ly, que abre com uma citação de Vitor Hugo: "Não há ervas ruins nem homens maus, há apenas maus cultivadores."

Assim como a cantoria às janelas em tempo de quarentena parece quadrar-se bem com o espírito italiano (quer dizer, espera-se desse povo um sinal de vitalidade e de comunidade como esse), dos franceses, país de Descartes e do racionalismo, que nos deu com a Revolução Francesa o maior exemplo de radicalidade, uma radicalidade quase abstracta, em que os símbolos se revelam duma operacionabilidade extrema (e não é o Terror que põe isso em causa), dos franceses dizia, em razão dessa experiência e dessa tradição, a luta de classes, os conflitos sociais, atingem rapidamente um significado  “paradigmático”.

O que me vem à ideia a propósito deste filme de Ladj Ly é que mesmo a cultura das comunidades de origem africana não pode deixar de ser influenciada por esta característica da nação gaulesa. Não é impunemente, digamos, que se convive com uma linguagem política e simbólica tão marcada pela história.


A comunidade imigrante traz, naturalmente, os seus próprios Lares, os rituais da sua cultura e da sua religião, mas o seu mundo não é de modo nenhum um mundo fechado. A descendência desses magrebinos, nascida já em França, radicaliza à francesa as suas posiçōes com a complexidade que os problemas raciais não podem deixar de carrear.

A origem da violência parece mais do que justificada no filme e a comunidade africana dos subúburbios que vibra com o campeonato nacional de futebol não deixa de sentir mais agudamente a tolerância e a discriminação.


A torre Eiffel aparece ao longe sobre o cafarnaum, e é a única indicação de que estamos em Paris. O subúrbio, justamente, não é o Magreb. As ideias da cultura hospedeira dir-se-ia que emanam daquela antena.


A história começa quando um dos rapazes da rua rouba uma cria de leão do circo dos ciganos. Estes procuram o culpado ameaçando varrer tudo a eito, e é aí que a polícia local intervém para impedir que a centelha se torne em fogo incontrolável.

Procurando evitar o conflito entre os dois grupos usa os métodos pouco ortodoxos que julga mais adequados ao terreno. Consegue encontrar o autor do roubo e devolver o animal aos ciganos. Mas um imprevisto desencadeia a revolta. Sob stress, um dos polícias dispara o seu "flash-ball" sobre um dos adolescentes, o que é filmado pelo drone dum dos residentes.

A partir daí a revolta dos jovens perde o freio. Os polícias são atacados e encurralados num prédio e a última imagem é a da vítima do disparo acidental empunhando um explosivo e pronto a lançá-lo sobre os homens cercados.

Um meio como este tinha que dar ensejo a toda esta violência? Talvez, mas há uma côr local em todo este extremismo. Pode pensar-se que a Revolução Francesa não é para aqui chamada, mas não é sem dúvida o que sugere o autor do filme que foi acordar o venerando Victor Hugo do seu sono de Imortal e se inspirou em Gavroche, uma das personagens do romance.

(*) Foi o médico francês Joseph-Ignace Guillotin(1738-1814) que sugeriu o uso deste aparelho na aplicação da pena de morte. Guillotin considerava este método de execução mais humano do que o enforcamento ou a decapitação com um machado.



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