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01/01/20

O ESCURO EMOCIONANTE

António Mesquita
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O que é que se perde em ver um filme concebido para prender, digamos, por duas horas, a atenção do espectador, quando o podemos ver como às vezes lemos um livro, em vários tempos, de concentração ou pressa, lendo, como se diz, "em diagonal", e se tivermos esquecido alguma coisa do trecho que lemos antes, voltar atrás para entender a sequência?

É preciso acrescentar que a serialização vem já do princípio do cinema e que hoje, graças à televisão, seguir o enredo em episódios faz parte do nosso quotidiano. A narrativa, como se percebe, é muito condicionada por esta divisão da história e as técnicas de aguçar o apetite para o próximo capítulo são a norma. 

Tudo isto vem a propósito da concorrência que a Netflix e outras plataformas semelhantes estão a fazer a Hollywood e à grande produção, a montante, e às salas de cinema, na distribuição. O primeiro grande sinal desse fenómeno foi, sem dúvida, o último filme de Martin Scorcese, "The Irishman" e, também "Marriage Story", de Noah Baumbach, ambos de 2019.

Como o primeiro se trata duma película de mais de três horas de duração (o qual, se fosse exibido em certas salas, nem sequer teria intervalo), pude vê-lo, tranquilamento em três arremetidas, sem qualquer constrangimento da bexiga. O que perdi?

Em primeiro lugar, o sentimento de estar a participar numa espécie de cerimónia colectiva que não exclui o contágio emocional. Numa disciplina do espectáculo que, quer se queira quer não, ajuda a manter a atenção focada. Não nos sentimos tentados a "esticar as pernas" ou a pegar no telemóvel. Mas é verdade que o cinema já não é o que era, com tantas sessões despovoadas e que nos dão, pelo contrário, a sensação de privilégio, de usufruirmos sozinhos, ou quase,  da "lanterna mágica".  

A televisão, por outro lado, já nos habituou a vermos cinema, num pequeno écrã, é certo, mas igualmente disponível, através da gravação, para o vermos "à la carte" e sem anúncios, os quais podemos passar a correr. Foi a primeira domesticação do cinema.

Tudo somado, a experiência do "streaming", essa possibilidade de ter em casa uma espécie de torneira para o serviço da arte vai no sentido duma sociedade atomizada em que o indivíduo ou a célula familiar parecem ser o mais importante. 

É, afinal, enquanto consumidor que o indivíduo é solicitado a ver cinema no novo regime. Mas o espectáculo colectivo, o cinema das enchentes doutros tempos, era mais do que um fenómeno de consumo, apesar da publicidade e do comércio envolvido. A nostalgia desse cinema é daí que vem. A presença dos outros, embora motivada pela mesma coisa, transcendia o espectáculo.

É por isso que se pode dizer que o "streaming" nos dá a ver cinema,  qualquer que seja a sua qualidade, e nada mais do que isso. Vêmo-lo com os nossos olhos e os demais sentidos, mas perdemos o sentido de fazermos parte, de alguma maneira, de sairmos de nós mesmos.

O paradoxo é que a mesma revolução tecnológica  que produz estes efeitos de "privatização", permitindo-me ver em casa o filme que quero, como quero, nos oferece, por outro lado, no fenómeno das redes sociais uma espécie de retribalização da sociedade. Mas faltam a essas redes  algumas dimensões essenciais da presença viva, como faltam ao cinema  visto em casa.

Não me custa a acreditar, porém, que quem nunca conheceu o escuro emocionante de uma sala cheia nem saberá a diferença.



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