StatCounter

View My Stats

01/08/17

CARTAS DE SANTA MARIA

Fernão Vasques


Tórshavn


Tórshavn, 31 de Julho



Esta cidade e o arquipélago, seduziram-me. Talvez seja a paisagem em geral, mas foram sobretudo as casas, as cores das habitações. Entre o nevoeiro, a neblina, a chuva, tudo o que possa baixar o céu e escurecer não consegue esconder as cores garridas, vibrantes, das paredes exteriores e dos telhados. Encantam-me os telhados cobertos de turfa, verdes como um prado de montanha. No Café Natúr, onde escrevo, há uma sensação de espaço portuário, o que de certa forma se ajusta tanto ao local onde se situa como à própria cidade. Tórshavn significa, Porto de Thor, mas os feroeses chamam-lhe apenas Havnin, ou seja, O Porto, o que me projecta o pensamento para o passado, lembranças guardadas, sonhos esquecidos. As Féroe eram um desejo de visita antigo, talvez pelo isolamento, pela geografia das suas ilhas, ou pelo local central como aparecem no atlas. As ilhas orientais possuem um aspecto majestático. Não existem aldeias de montanha, aparecem-nos todas junto ao mar como se pretendessem ficar protegidas por aquelas massas de pedra que se erguem na sua retaguarda. A Borðoy é uma cordilheira que se estende ao longo de 20 kms com altitudes a chegar aos 750 metros com uma espécie de braço de cada um dos lados da ilha. É um maciço de magma. Foi um risco, mas alcandorei-me em caminhada até um dos seus cumes. Adquirimos uma sensação de plenitude, de grandeza e, por outro lado, de imensa pequenez face ao que nos rodeia. Sentei-me e deixei-me ir. Estou em crer que em dias de horizonte limpo o olhar pode alcançar a costa norueguesa e islandesa. Ocorreu-me à memória uma dessas pessoas quase únicas que encontramos na vida. Um dia, numa reunião, trouxe um recorte de jornal que falava do infinitamente grande e do infinitamente pequeno, a física no seu esplendor. A dimensão de uma galáxia, que não podemos compreender, se não conhecermos a pequenez de um átomo. Os seres humanos, também guardam no seu interior, dois infinitos, que se revelam pela maldade e pela virtude. Percebi as horas a passar e não conseguia sair daquele abandono. Tentava imaginar a explosão vulcânica que projectou no espaço aquelas massas graníticas como um fogo-de-artifício em explosão crescente e, de seguida, cansadas, a escorrerem lentas, vermelhas e quentes em direcção ao oceano, solidificando erectas antes de se renderem. Ali estão, a proporcionar momentos de leveza na reflexão humana. Naquele espaço e perante aquelas formas compreende-se melhor o amor que nos segura a vida, e o porquê da nossa tão grande vontade de viver, de tanto amar a natureza que nos cerca e, perante tudo isto, a nossa incompreensão da morte, como se ela não fosse um elemento integrante da própria vida. Só morre o que nasce. Queremos viver e ao mesmo tempo não conseguimos parar o envelhecimento, com a sua perda de autonomia, de movimentos, de memória, como se nos fosse derrotando num processo lento e imparável. Que pena não podermos iludir este decaimento, quando a vida nos proporciona momentos de uma beleza inexprimível como aquele sentido no alto de Lokki no centro da Borðoy. Não sabia se escutava o silêncio ou se, eram sons que me chegavam em refluxos de memória. Ocorreram-me as palavras poemárias de António Borges Coelho quando lhe aprisionaram o corpo nas masmorras de Peniche, «Ouço o fragor da vaga/ do mar a bater no fundo». Sinto-me como uma ave de asas largas a planar sobre o sonho e visito a frase de uma exposição pensando numa dessas pessoas que nos marcam a alma para todo o sempre, «Elevas-me com o teu toque embora eu não consiga ver as tuas mãos». Não sei quando acordei daquele êxtase e iniciei a descida. Tórshavn é uma das mais antigas capitais europeias, na sua pequenez secular que só nos últimos cem anos a fez crescer ao nível de uma pequeníssima cidade nos seus cerca de doze mil habitantes. O seu centro histórico é simplesmente um espaço de encantar onde podemos caminhar entre mitos e duendes. Por estes dias celebra o Ólavsøka, o festival que homenageia São Olavo, o rei que foi da Noruega, na distante data do início do século XI. Comemorado nos finais de Julho transforma o dia 29 num dos feriados mais importantes do país, juntamente com o dia 25 de Abril, o Dia da Bandeira. A história do arquipélago ultrapassa os mil anos e é preenchida por uma história de ocupação, repartida entre a Noruega e a Dinamarca com uma breve ocupação inglesa durante a última Grande Guerra. Com uma taxa de fecundidade das mais elevadas da Europa, o conjunto destas ilhas, mostra que o que parece um grande isolamento não é necessariamente um mal a evitar. Koltur tem 2 habitantes, mas um fim de tarde na encosta sobranceira às casas, deixa-nos no limbo da melancolia e da eternidade. Há algo de profundo na contemplação da placidez das águas, na quietude das montanhas, nas suas encostas verdejantes, como um jardim acabado de tratar, na névoa que se estende esfarrapada no horizonte. É como se escutássemos uma música em tom baixo e longínquo. Sentimos um roçar da perfeição no que o olhar abarca. Apetece amar, essa expressão de emoções e sentimentos que nos proporciona a proximidade de alguém, um outro ser para uma repartição de gestos e olhares. Um pouco de mim vai ficar nestas ilhas.




Sem comentários:

View My Stats