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01/07/16

CARTAS DE SANTA MARIA


Cáceres, 30 de Junho

Cáceres

Sinto-me cansado. Passam das três horas da tarde e procuro mexer-me o menos possível. Respiro com dificuldade nesta explosão de calor que se abate sobre a cidade. Falam-me de 34⁰, mas a sensação que tenho é de me encontrar na entrada da abertura de um forno a lenha no auge do fogo a crepitar. Há vários dias que repito estes passos, sem procurar afastar-me demasiado. Sentei-me sem pedir licença nas cadeiras exteriores do El Puchero e escondido nas arcadas da PlazaMayor abro os olhos como seteiras para impedir que a luminosidade penetre de tal forma que me impeça de ver o que me rodeia. Do outro lado da praça em plena exposição ao sol, contemplo a Torre Bujaco nos seus 25 metros de altura em pleno desafio a esta intempérie. Tudo parece ressequido, como terra sem água e na pedra avermelhada das suas largas paredes começo a ver uma fritadeira com amarelos ovos a estrelar. Será a sede a apoquentar-me. Cheguei a Cáceres depois de atravessar pelo norte o Parque Nacional deCabañeros e o embalse de Cíjara. Iludi as grandes estradas e aglomerados. De seguida, a intensidade calorífera venceu-meapesar de me conter neste quilómetro quadrado do casco histórico quase nada procurei ver. A cidade é antiga com vestígios pré-históricos na região, mas foram os romanos quea ergueram. Nestes espaços do Estado espanhol quase só encontramos Roma e os Árabes. Dos Visigodos, os tais reis cristãos que recuaram impelidos pelos árabes, como a história nos conta, quase nada se encontra. Cáceres é uma excepção, os Visigodos chegaram aqui no século V e arrasaram de tal forma a cidade que não se ouviu falar dela nos quatrocentos anos seguintes. Reergueu-se com a ocupação árabe que no século IX dela fizeram uma fortaleza até ao início do século XIII, quando Afonso IX a incorpora no reino de Leão, acabando as mesquitas em igrejas e os palácios muçulmanos em cristãos. Vou pensando no desenrolar da história, mas de forma pausada e tento de novo compreender como se pode apagar a presença de um povo e de uma cultura ao fim de quinhentos anos de permanência num mesmo espaço e como sentiriam os árabes este território tão diferente dos sons do deserto de onde inicialmente procederam. O calor, a luminosidade, quase se assemelha, mas aqui chove com abundância no Outono e na Primavera. Será que conseguiam escutar os rumores do silêncio que só na extensão das areias é audível? Sim, nas montanhas, também o silêncio crepuscular é imobilizador, mas o entardecer nas extensões desérticas transporta fantasia, faz nascer uma harmonia de sons navegantes como se praticamente pousassem no chão deambulando. Foi nesse ambiente que Saint-Exupéry escreveu O Principezinho, mas hoje não escreverei sobre esta obra magistral, por que, como surgido destas ondas de calor o pensamento foge-me para o sopé da cordilheira do Atlas e detém-se na cidade vermelha de Marráquexe. Como aparecido do nada, os meus ouvidos sintonizam agora o canto árabe, o falar berbere, o enlevo da cidade às portas do deserto e chego até esse inglês, John Hopkins que se deixou aprisionar pelo fascínio mágico das cores e da melodia, dessa simetria que irradia dos sons e das imagens e tal foi o seu encanto que ao morrer, a berbere que aos 19 anos com ele casou e os 8 filhos que ambos geraram, dedicaram-lhe um poema no qualaparecem todos os sinais que o faziam amar a vida e os que o acompanharam nessa odisseia de passar pela humanidade. Ler essas palavras não nos deixa apenas em êxtase, obriga-nos a deslocar o quadro mental para uma percepção completa da pureza que podemos encontrar nos objectos mais simples da natureza. Sinto-me enfraquecido, nesses momentos em que nos apetece parar, desistir e regressar ao passado na procura do que perdemos, mesmo sabendo que o passado passou e o tempo e o espaço dos acontecimentos não se repete. Nessa fraqueza dos sentimentos e na emoção da perda, não consigo evitar soletrar uma a uma cada palavra daquele poema escrito npequena tábua pendurada numa parede, «que pena que já não vejas os jacarandás, as roseiras, as buganvílias dos jardins que já não oiças o som das águas nas fontes que não escutes o silêncio dos pátios que não vejas as estrelas nos terraços que pena já não vejas todas as coisas que amávamos». Que pena não estejas aqui para te falar da beleza do que vejo e do que encontro, digo eu, mas a mão treme nesta escrita, certamente pelo estio que me cerca. Dizem-me que a temperatura vai subir aos 39⁰ até Domingo, pelo que amanhã aos primeiros alvores da madrugada, volto à estrada prosseguindo em direcção à fronteira.

Fernão Vasques*

* Por favor, não me confundam com o corajoso alfaiate que em 1371 ousou desafiar, em nome do povo, O Formoso e a futura rainha. Sou apenas um sonhador, digo eu, dos finais do século XX com endereço em Santa Maria das Júnias. São duas ruínas que se amparam, as minhas e as do mosteiro.


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