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01/05/16

CARTAS DE SANTA MARIA

(Segóvia)


Segóvia, 30 de Abril 


Sentado no interior do Café Juan Bravo assisto sem pressa à passagem da manhã olhando o movimento da Plaza Mayor, sem vontade de me mover face a um sol frio que não chega a aquecer o suficiente para me fazer caminhar pelas estreitas ruas desta medieval cidade que parece prender os seus 55 mil habitantes num estreito rectângulo. As pedras da catedral erguem-se ao fundo dominadoras sobre o casario e o edifício do Ayuntamiento parece encolhido como se o seu poder ainda fosse de um tempo secundário. Sem o frio a chegar-me ao corpo e com a visão do sol a espalhar-se, faz-me sentir bem e sem vontade. Esta cidade, Património da Humanidade desde 1985, despertou-me a curiosidade de uma forma mais atenta, há uns bons anos atrás, ao ler um livro oferecido, sobre a infância e a adolescência de Maria Zambrano. Os anos que antecedem a sua entrada na idade adulta, são vividos numa Segóvia dos inícios do século XX e face a uma leitura tão enternecedora, Segóvia ficou-me no olhar das viagens a fazer. Há cerca de meia dúzia de anos, um acaso fez-me passar por aqui, mas nesse dia e nas escassas horas que dispunha, tudo pareceu correr mal. Ao chegar à Casa Museu Antonio Machado, verifiquei que estava a minutos de se encerrar e não a pude visitar. Percorro a Calle Marqués del Arco e paro para escolher uns afectos em forma de lembranças e quando alcanço a porta da Catedral, encontro esta acabada de encerrar; no tempo que restava, desisti de visitar metade do Alcácer, pois a hora da partida, impunha-me essa restrição. Regressei pois a Segóvia e se no primeiro dia descansei da caminhada que me tinha trazido desde a fronteira com escassas paragens em Salamanca e Ávila, no segundo dirigi-me de imediato para a Calle los Desamparados para conversar com o poeta. Antonio Machado exerceu sempre um certo fascínio sobre o meu pensamento que o relato dos primeiros tempos de vida da Zambrano me fez avivar ainda mais. Como em tantos poetas, também neste há algo de encantatório e trágico. Nascido em Sevilha, em 1885, estudante em Madrid no final do século XIX não escapa à vida boémia de então. A morte do avô vai fazer ruir em escombros toda a estabilidade económica da família e o poeta que segundo Guillón y Diego, «falava em verso e vivia em poesia», aparece em Soria a dar aulas. É nesta cidade, que assiste à passagem do Douro em plena Meseta, que aos 34 anos conhece Leonor Izquierdo uma menina de 13 anos que lhe faz nascer um amor apaixonado, o qual lhe arrebata a alma e estremece o pensamento, amor esse correspondido, de tal forma, que Leonor passa a ser o seu complemento poético. Ao fazer 15 anos casam-se, mas dois anos depois, uma dessas doenças devastadoras do início do século XX, levam a vida da adolescente transformada em mulher. O poeta de «Caminante, no hay camino,/ se hace camino al andar./ Al andar se hace el camino,/ y al volver la vista atrás/ se ve la senda que nunca/ se ha de volver a pisar», não resiste à perda deste grande amor e pede a transferência para Madrid vindo a encontrar lugar em Baeza, nos arredores da cidade. Em 1916 conhecerá Federico Garcia Lorca e em 1919 chega a Segóvia para leccionar a cátedra de francês, ficando hospedado na pensão de doña Luísa, hoje a Casa Museu. Participante da fundação da Universidade Popular integrará a famosa tertúlia da cidade, juntamente com, entre outros Blas Zambrano, o pai de Maria, Manuel Iracheta e Emiliano Barral. Ficará na cidade até 1932, mas em 1928, recebe a visita de Pilar de Valderrama. Esta mulher, poetisa, dramaturga, casada e mãe de três filhos, pertencia à alta burguesia madrilena e nunca ficou claro como chega a Segóvia e se encontra com Antonio Machado. Os seus encontros, repartidos entre esta cidade e Madrid vão prolongar-se por sete anos e Valderrama aparece na poesia do sevilhano com o nome de Guiomar e só após a morte da madrilena se conhecerá, apenas pela versão dela, que uma e outra eram a mesma pessoa. Segundo Pilar, viveram um amor platónico, mas das mais de duzentas cartas que recebeu dele, teve o cuidado – ou a sorte, segundo ela -, de salvar trinta e seis. Por fim, seguiu-se a guerra e o final dos combates, quando a violência fascista presidida por um galego inculto, bronco e humanamente miserável, iniciava o caminho de levar o Estado espanhol a trinta e cinco anos de terror inquisitorial, encontra Antonio Machado em Barcelona de onde sai com a mãe e um irmão em direcção à fronteira francesa debaixo de bombardeamentos. A idade, a debilidade física do poeta e o desgosto pelos acontecimentos que o rodeavam, marcam-lhe o fim da vida. Entra em França no fim de Janeiro de 1939 e a 22 de Fevereiro morre em Colliure onde foi enterrado e onde ainda permanece o que resta do seu corpo. Sua mãe que havia dito que «Estoy dispuesta a vivir tanto como mi hijo António», sucumbe à tristeza da sua morte três dias depois. Esta visita deixou-me num estupor melancólico e à tarde saí da cidade caminhando a pouca distância que a separam do Mosteiro da Ordem Jerónima de Santa Maria del Parral e da Igreja Românica de Vera Cruz, com as suas pedras queimadas pelo sol ardente do Verão e os frios tumulares do Inverno, numa terra seca que entre o calor e o gelo, pouca água conhece a não ser a dos caudais dos rios Eresma e Clamores. Nos dias seguintes, voltei a caminhar pelas ruas estreitas desta cidade que viu nos primeiros dois séculos do primeiro milénio os romanos estenderem um aqueduto com mais de 700 metros para que a água chegasse, uma catedral tardia com traços góticos renascentistas e um alcácer soberbo, elegante, belo e dominador. Assente sobre uma fortificação islâmica no século XII será completado por Felipe II. Ao longo da Idade Média foi residência favorita da Corte e em 1474 assistirá ao casamento de Isabel de Castela e Fernando de Aragão, quase se podendo dizer que neste enlace nascia Espanha. Prisão e alojamento da Real Escola de Artilharia é hoje um palácio. A manhã vai aquecendo e dentro em breve vou sair do aconchego do Café onde me agasalho. O meu pensamento permanece ainda com a vida do poeta e da sua poesia, «Nuestras horas son minutos/ cuando esperamos saber,/ y siglos cuando sabemos/ lo que se puede aprender». Amanhã vou para sul através da Guadarrama. 

Fernão Vasques*


* Por favor, não me confundam com o corajoso alfaiate que em 1371 ousou desafiar, em nome do povo, O Formoso e a futura rainha. Sou apenas um sonhador, digo eu, dos finais do século XX com endereço em Santa Maria das Júnias. São duas ruínas que se amparam, as minhas e as do mosteiro.







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