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01/03/16

CARTA À POESIA






Minha amada poesia, escrevo-te com a intenção de que esta minha carta chegue até ti no dia do teu aniversário. É uma carta de celebração, pois disseram-me que, Celebrar a poesia é sempre cuidar de algo muito especial para a vida humana (1). Mas é também uma carta de saudação e de agradecimento pela tua companhia, pela tua capacidade de saberes escutar, de sempre me ouvires e de, em todas as ocasiões que te procuro, teres uma palavra amiga que ameniza a solidão e alivia a fadiga da tristeza. Tu poesia que pela vida fora me tens acompanhado, lembro ainda a tua chegada nessa infância em que te ouvia dizer, Dorme meu menino a Estrela d’Alva/ já a procurei e não a vi/ se ela não vier de madrugada/ outra que eu souber será para ti (2) e os meus olhos seguiam em viagem pela noite, mas nessa idade ínfima de descoberta do mundo ainda voltaste com as estrelas para me encantar, Quando no silêncio das noites de luar/ via uma estrela pelo céu a correr/ dizia minha mãe de mãos erguidas/que te guie Deus por bem (3). Mas os anos foram passando, poesia, e houve um momento em que nos sentimos nesse crescimento que parecendo moroso e só dele demos conta quando olhamos para trás e compreendemos que a adolescência nos antecipou a chegada a adultos e de nós exigiu uma atenção para a pátria que nos viu nascer e nos reclamou na defesa de valores morais e de uma ética que colidiam com a vontade e a força de um poder bastardo que fazia da escuridão da noite, a amargura dos dias. Foi o tempo de o Meu pensamento/partiu no vento/podem prendê-lo/matá-lo não (4). Que dias esses poesia! Que teríamos feito sem ti nas noites silenciosas em que soltávamos mensagens de coragem pelas ruas. Parecíamos muitos e tão poucos éramos e a cada passo, a cada tentativa de chegar mais longe, víamos, que, Erguem-se muros em volta/ do corpo quando nos damos/ amor semeia a revolta/ que neste instante calamos (5), mas perante as adversidades, lá voltavas tu de novo poesia e trazías-nos as palavras tão limpas de Sophia, que nos projectavam para um novo assalto à fortaleza que lentamente ia apodrecendo, Porque os outros se mascaram mas tu não/ porque os outros usam a virtude/ para comprar o que não tem perdão/ porque os outros têm medo mas tu não (6). Tudo vibrava então em nosso redor, como se mil carros de combate nos acompanhassem e regressávamos ao assalto do alcáçar, troando à nossa volta a artilharia poética de Urbano, Já estreme a tirania/ já o sol amanheceu/ mil olhos tem o dragão/ há chamas de oiro no céu (7) e no fragor da batalha, surgia-nos Torga incentivando para que resistíssemos dizendo que, A honra era lutar sem esperança de vencer (8). E lutamos querida poesia, um dia atrás do outro, mesmo que somassem meses, e a cada um que soçobrava, outro logo se erguia como os Imortais de Dario e quando de forma melíflua e insidiosa, nos tentavam vencer procurando fazer-nos desistir, logo nos surgia do chão a poesia de Vinícius com o seu operário em construção, Portanto, tudo o que vês [dizia sussurrante o patrão ao operário]/ será teu se me adorares/ e, ainda mais, se abandonares/ o que te faz dizer não.(…) e o operário disse: Não! (9). Nesses dias em que os olhares se escondiam e os sonhos eram perseguidos, sem ti, estimada poesia, não teríamos conseguido alcançar essa galáxia distante onde mora a utopia. Até que por fim, Sophia pôde escrever as palavras que há tanto tempo ansiava quando aquele dia se levantou mais cedo e se podia ver que, Esta é a madrugada que eu esperava/ o dia inicial inteiro e limpo/ onde emergimos da noite e do silêncio/ e livres habitamos a substância do tempo (6). Tu sabes poesia o quanto amamos o sabor da liberdade e como sempre nos acompanhaste no cantar da nova festa. Mas esse foi também o tempo das paixões que foram chegando, e a cada uma que nascia, um sorriso se acrescentava ao vento e nesses dias de fulgor, foi Neruda que me acompanhou com a sua paixão por Albertina que se assemelhava às minhas, Em ti os rios cantam e a alma foge-me neles, Nos teus olhos lutavam as folhas do crepúsculo, Na minha terra deserta és a última rosa, Brincas todos os dias com a luz do universo (10). E assim foram caminhando os meus anos, mas apesar da tua ajuda constante, do conforto do teu auxílio, da tua presença sem abandono, tudo foi acabando nesse triste lamento de, Tanta paixão de pranto agarrada ao meu corpo (10) e terminei Abandonado como os cais na madrugada (10) nessa Canção Desesperada do poeta. Prosseguiu, entretanto, a vida nesse acumular do tempo e sem dar conta de mim tinha crescido e nesse crescimento que amadurece, surgiram os amigos. Sim esses que são, Maior que o pensamento (2). Chegaram um a um ao longo da vida, e ficaram, pois são amigos que não se podem perder, são dessas pessoas que marcam a nossa vida para sempre e sem elas nada mais seria igual. Como nos deixou escrito Eugénio, Somos amigos, somos vivos (11), dependemos da sua existência para viver. Não posso detalhar os pormenores da nossa amizade, poesia, ou pelo menos, todos esses instantes em que amparaste, me indicaste caminhos, me mostraste a outra face da lua, mas lembro como se fosse hoje, quando me disseste para saber esperar, para aguardar com paciência, a pessoa que há tanto desejava, que fosse observando na berma da estrada que um dia, mesmo que longínquo, haveria de a ver aproximar-se. Como, se não sei quem é?, perguntei-te, lembras-te? e respondeste que quando chegasse, logo saberia reconhecê-la. E assim foi, esperei na tua companhia, os anos foram passando e um dia quando parecia que já nada poderia ocorrer, chegou. Serenamente, sem pressa, como se toda a vida tivesse estado presente. Reconheci-a pelo olhar porque quando me mirava esquecia tudo (12), mas também pelo sorriso, pelo extraordinário sorriso. O sorriso foi quem abriu a porta. Era um sorriso com muita luz/lá dentro (11). Tudo parou nesse dia, o calendário recomeçou a contagem dos dias, o sol passou a nascer a norte, o mar pintou-se todo de azul e as montanhas escorregaram sossegadas para os vales, os vulcões recolheram ao centro da terra. Quanta diferença senti a partir de então à minha volta e tive de reformular todas as perguntas, renasci noutra terra, voguei pelo espaço como um satélite de Saturno. Quando consegui falar, soletrei apenas as palavras da canção da Marisa, Ainda bem que você chegou/ você que me faz feliz/ você que me faz cantar (13). Quantas árvores floriram naquela Primavera não cheguei a saber, lembro apenas que na esteira do tempo, Durou muitos anos aquele Verão e que brotou água onde tudo era secura (11). Só tu, poesia, sabes como sonhei nesses tempos desvairados, perante essa rainha que surgiu do nada e estendeu para mim os seus braços como ramos de uma árvore e encheu a minha alma de folhas verdejantes. À noite saía pelo universo e lembrava o poema dos Aqua Viva, de quien es ese caballo que va en el aire, galopando? (14) e quando o cansaço me vencia, adormecia suspenso numa praia à beira-mar mas, O rumor da sua voz entra-me pelo sono (11). Acordava nos braços do [seu] olhar (11) e lançava apelos incompreensíveis às gaivotas, perguntando, A quem falas quando iluminas de uma luz tão quente cada palavra (11). Sem bússola, sem rota, percorrendo os mares em semi-círculo, fui escrevendo nas areias de todas as ilhas de mares nunca antes navegados, Para ti, meu amor, é cada sonho/ de todas as palavras que escrever,/ cada imagem de luz e de futuro,/ cada dia dos dias que viver (15) e em cada farol de todas as falésias, o seu olhar lançava nuvens de luz coroadas de estrelas e nele se naufragou a minha invencível armada filipina, e nele ficaram meus carros de combate destroçados (16). Quando os meus rios corriam soltos para o mar e em largo delta se abriam, num abraço de infinito ardor, e o oceano flutuava com um papagaio solto ao vento, os caminhos pareceram abrir-se em largo deserto de areia solta, sem horizonte e os pontos cardeais desfocados. Soltaram-se os meus galeões e o cabo Adamastor adquiriu vida, atirando-lhes a rota para o alto mar, sem terra à vista, sem vento, apenas o silêncio, um intenso e profundo silêncio. A Helena Vasconcelos passa por mim apressada e solta a voz no ar dizendo que, A vida acontece sempre de maneira diferente e os sinais que julgamos que nos são destinados afinal dirigem-se a outra pessoa (17). Quando procurava na paisagem os restos do meu sonho, a espantosa doçura dessa rainha que chegou da longínqua terra egípcia para me acolher, encontro o Júlio Machado Vaz que me diz que, Ela já tinha ido embora antes de partir (18). Desembarquei, percorri os caminhos solitários da ilha e instalei-me na única casa habitável. Aí me visitou num dia longínquo, Mónica Baldaque que com a melancolia da sua voz me explicou que, Quando uma história entre duas pessoas se esgota, sabe bem a companhia da solidão, a poesia de cada dia que passa (19). Tell-el-Amarna já não existe. No silêncio das suas avenidas sumidas na poeira do tempo, escuto ainda como um rumor melodioso, o intenso aroma dessa rainha que nos deixou para viver noutro oásis, certamente mais luxuriante e perfeito do que havia nestes palácios agora em ruínas. Todas as manhãs, quando a madrugada anuncia o dia e a nascente se percebe o crescer da estrela brilhante que foi o seu deus, com todo o fulgor do seu vermelho rio de amarelo, limpo pacientemente as partes visíveis dos pilares que erguiam o esplendor das construções que sentiam a leveza dos seus passos e escrevo em letra desenhada para ficar gravado para todo o sempre, Transpondo os versos vieste à minha vida/ e um rio abriu-se onde era areia e dor./ Porque chegaste à hora prometida/ aqui te deixo tudo, meu amor (15). A vida é agora uma estrada em linha recta que atravessa um deserto e se dirige para um ponto no horizonte que os meus olhos cansados já não distinguem se perto ou longe. Voltou o silêncio, o qual me ensinou o poeta angolano Manuel Rui, é uma forma de falar comigo, e O silêncio está em flor/ como uma macieira branca sob a lua (20). É verdade que Não sou nada. Nunca serei nada, não posso querer ser nada. À parte isso, tenho [ainda] em mim todos os sonhos do mundo (21) e por isso A espantosa realidade das cousas [continua a ser] a minha descoberta de todos os dias (21). O mar continua ao longe na sua incansável viagem de ir e voltar e quando deixo que os meus olhos se percam no azul infinito das suas águas escuto a memória dizer, Se viesses ver-me hoje à tardinha, /a essa hora dos mágicos cansaços (16). Caminho e procuro na natureza o roteiro para uma nova utopia. Ao meu lado, tu minha estimada amiga poesia, tu que pudeste responder à pergunta de Neruda, sobre para onde vão as lágrimas que não choramos? (10), vais conversando, abrindo o livro das tuas palavras e escutando as minhas interrogações. Sigo os teus conselhos e concluo que pode haver algo mais em mim para além do nome que me identifica, Hebraico-mourisco, meu nome,/ não sei o que quer dizer./ Sei que não matas a fome/ a quem me quer conhecer./ Quem me quiser conhecer/ tem que descer mais ao fundo/ do que o nome lhe disser;/ por trás do nome, há um mundo. /Quem quiser é só descer (22). Minha amada poesia, tenho de encerrar esta carta e na despedida por hoje, deixo-te apenas o pedido que o Manuel António Pina te fez para mim, Protege-me com ele, com o teu olhar,/ dos demónios da noite e das aflições do dia,/ fala em voz alta, não deixes que adormeça,/ afasta de mim o pecado da infelicidade (23). Com um abraço eterno,

Afonso Vaz
(1) – Guilherme D’Oliveira Martins
(2) – José Afonso
(3) – Adriano Correia de Oliveira
(4) – Manuel Alegre
(5) – António Ferreira Guedes
(6) – Sophia de Mello Breyner Andersen
(7) – Urbano Tavares Rodrigues
(8) – Miguel Torga
(9) – Vinícius de Morais
(10) – Pablo Neruda
(11) – Eugénio de Andrade
(12) – Francisco Duarte Mangas em Jacarandá
(13) – Marisa Monte
(14) – Aqua Viva (?)
(15) – Carlos de Oliveira
(16) – Florbela Espanca
(17) – Helena Vasconcelos
(18) – Júlio Machado Vaz em À Beira-Rio
(19) – Mónica Baldaque em A Raiz vermelha do amor
(20) – Pierre Emmanuel
(21) – Álvaro de Campos
(22) – David Mourão Ferreira
(23) – Manuel António Pina






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