StatCounter

View My Stats

01/07/12

TODOS OS DIAS

Cristina Guerreiro

http://olhares.sapo.pt/danigalanti




Todos os dias passa por ali.

Todos os dias a recorda porque todos os dias a vê passar como se as tardes de Verão tivessem parado encadeadas no reflexo dos vidros das casas, ela a descer a rua, muito direita, as árvores a lançarem sombras esguias pelo pico do calor, ela empinada nos saltos, a oficina a meio de portadas abertas e o pessoal aos assobios, ela a aspirar o cheiro da gasolina.

Tem hora de chegada, a mesa de bistrot é uma moeda para tantos cotovelos e cigarros e afinal tudo cabe, tudo se ajeita, mais se agigantam os parceiros, Kant, Freud, Zeca Afonso, Che vão rodando cadeiras e ela senta-se apertada, cumprimenta de mão, de boca, tocam-se dedos, pedem-se cafés, capilés que o calor hoje não dá tréguas, chegou-se aos 32º imagine-se aonde isto vai parar...

Falam-se de amores e de pudores, não se chora, as lágrimas reservam-se para alegrias a valer, para dias de Maio ou liberdades impensadas ou mundos sem guerra, deixa-se crescer o cabelo como promessa de amizade eterna a amigos para sempre e vive-se permanentemente com uma caneta e um bocado de papel no bolso, não há dinheiro para comprar máquinas fotográficas, o registo é à mão e já está.

Lembra-se dela.

Todos os dias.

Há-de ter agora rugas e o cabelo raiado depois de muitas vezes ter sido cortado.

A oficina é agora um centro de dia para idosos, não há assobios, tem uma rampa e cadeiras de rodas ou velhos de bengalas.

Cortaram todas as árvores da rua alegando que eram causa de alergia e substituíram por estacionamentos pagos. Não há mais reflexos em vidros porque todas as casas são agora edifícios altos e a custo os raios de sol dominam aquele bocado.

O café Central ainda é o café Central. Não se fuma lá dentro. Não há mesas de bistrot. Não há conversas de tertúlia, nem promessas de mundos melhores, nem jovens sentados, nem ela que não sendo jovem ainda lá entra e sai. Só isso, entra e sai. Ninguém repara, ninguém a interpela, é invisível, quase perpassável.

Ainda ouve Zeca Afonso e entende Che, não concorda tanto com Freud e percebe Kant de diferente modo, alguns de seus amigos já partiram de vez, apenas dois se mantêm na sua vida, do resto não sabe, mas pensa neles, pensa muito neles. Guarda os pedaços de papel de cada um, imitação de fotografias instantâneas que se trocaram em tempos de verdades absolutas. Outras verdades. Verdades diferentes, não melhores, apenas diferentes, do tamanho que se tinha lá.

Já chorou muito desde então e a maioria por tristeza profunda mas o tempo a passar levou-lhe também as lágrimas e já se esqueceu da última vez que sentiu os olhos molhados.

Todos os dias.

Por vezes sente vergonha de não a alcançar, tocar-lhe os dedos, dizer-lhe o nome.

Mas há coisas que são mesmo assim, distantes, lembranças, querer estar perto para não chegar, recordações que se querem guardar junto à memória de tempos muito felizes. Sempre.


Sem comentários:

View My Stats