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01/05/10

O JOGO DO REICH

António Mesquita


No romance de Roberto Bolaño, Udo Berger, campeão de war games de Estugarda, está com a namorada na Costa Brava, em Espanha, a treinar um novo jogo chamado "O Terceiro Reich". Conhece um personagem desfigurado, o Queimado, que aluga "gaivotas" e dorme na praia, com quem começa a jogar, à partida com enorme vantagem, mas pouco a pouco percebe que sofrerá o desfecho histórico. O jogo influencia todos os seus actos e pensamentos, mesmo que nada pareçam ter a ver com estratégia militar, contribuindo para isso o facto de Udo e a companheira terem conhecido um outro casal de alemães, Charley e Hannah, e dos donos do hotel serem também dessa nacionalidade. Os sucessos no tabuleiro dão lugar a um crescente sentimento de que não se trata apenas de fichas que avançam ou recuam, mas de que a sua vida corre um perigo real, perigo de que todos à sua volta estão conscientes. Depois de Charley ter desaparecido no mar e o grupo se ter desfeito, regressando a namorada de Udo e a "viúva" de Charley à Alemanha, o ominoso despique com o Queimado prossegue, registado dia a dia como uma crónica de guerra. Finalmente, o triunfo do Queimado com a queda de Berlim revela-se um anti-clímax. O "monstro", depois dum instante de regozijo, limitou-se a ficar parado diante do mar. O narrador não foi talhado aos bocados, nem tratado como um vencido da guerra. O "Terceiro Reich" era apenas um jogo. Quando por sua vez regressa a Estugarda Udo é um outro homem, definitivamente desinteressado pelo mundo dos war games.

A vida é ou não um jogo? seria uma conclusão que não faria justiça ao livro que não pode ser resumido, visto que a sua essência é o tempo romanesco. Udo Berger cai numa realidade sem forma e sem relevo logo que deixa de acreditar na "seriedade" do jogo, com a tomada do bunker final dando lugar ao vazio dum post-coitum. O jogo, nessa perspectiva, confunde-se com o próprio romance em cuja temperatura mergulhámos por um tempo, fora da realidade. É isso que transforma a banalidade de meia dúzia de personagens, não mais loucos do que qualquer um de nós, num pesadelo "decepcionante". Claro que se trata dum pesadelo germânico. Isso vai ao encontro duma metáfora da vida como jogo. Não é possível admirar o génio e o heroísmo de generais como Rommel e Guderian, como se a guerra fosse um simples jogo. E não é esse vício da abstracção (com a separação dos meios e dos fins) uma especialidade cultural presente em todas as justificações do genocídio, como na ladainha de Eichmann que dizia limitar-se a cumprir ordens?


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