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01/12/08

A TORTURA

Mário Faria




O homem não sabia se tinha acordado, se estaria com pesadelos: encontrava-se num lugar que não conseguia vislumbrar ou reconhecer, mas que sentia ser hostil. Porque estava lá ?
Numa meia penumbra, uma luz mais forte incidia no rosto. Ouvia vozes, algumas de comando. Não sabia se o estavam a torturar, mas temia-o seriamente, e revoltava-se contra essa impotência de não poder reagir, gritar e expulsar os demónios que dele se tinham apoderado.
Queria falar, mas não podia. A dor física não era insuportável, mas o incómodo era muito e difícil de explicar. Psicologicamente aproximava-se do ponto zero. Sentia um objecto disforme que lhe descia pela garganta, o sufocava e o deixava à beira do pânico. Era uma sensação duplamente estranha: pressentia que estava drogado, porque a esses momentos de pânico sucediam momentos de algum sossego. Entrava numa espécie de limbo que lhe adormecia a dor, o espanto e o terror, mas que não o pacientavam de todo. Era uma calma desassossegada, porque pressentia que o perigo continuava a espreitar e os maus se mantinham por perto para provocar mais danos.
Passou, assim, demasiado tempo sem reconhecer quanto tempo passou, de facto. Entre a sonolência sem jeito e o estar meio desperto, foi percebendo que sentia esses sinais de vida pela pior via : o pânico, que não havia forma de desertar.
Sentia que entrava gente e novos visitantes, que não pôde reconhecer. Eram mais estranhos que os restantes desconhecidos. Aproveitava de todas as formas possíveis essa sensação de presença para assinalar a angústia e o medo. Com o dedo, coberto por algo metálico, batia no bordo do que supunha ser um catre (uma maca ?, uma cama ?), para chamar a atenção e avisar um eventual salvador, daqueles que costumam aparecer nos filmes, dos mil perigos que julgava correr. Mas, nada. Apenas, lhe ralhavam e o mandavam estar calmo e quietinho.
Tornava a cair numa sonolência a que queria fugir, porque lhe parecia um pronuncio de morte, mas que o atraía porque o sossegava, por momentos, daquela tortura que era estar vivo. O objecto continuava, pela boca dentro, a perfurar-lhe a vida, o ânimo, a carne, a calma e a vontade de sobreviver. Afinal, não sabia onde estava, quem o acompanhava e se estava a ser sujeito a um qualquer ritual satânico.
Passou tempo, muito tempo. Não sabe se foi uma hora, várias ou apenas uma dúzia de minutos. Sabe que foi demais. Cada vez se sentia mais inquieto : tentava mostrar por todas as formas a sua revolta na esperança que um bom samaritano viesse em seu socorro.
Notou que alguém importante entrou, pelo silêncio que ecoou. Dialogou com terceiros e, então, sentiu que esse intruso lhe arrancou das entranhas, num repente e num puxão deveras irritativo, o escabroso objecto desconhecido que tanto horror lhe tinha causado. Tinha chegado o salvador, finalmente. Tossiu para afastar a rouquidão que se tinha instalado numa garganta que parecia lixa. Acalmou, dormitou por uns breves (?) instantes, em paz e sossego, finalmente.
Abriu os olhos e já via : tinha a família junto de si, que lhe explicaram que tinha sido operado de urgência, que estava numa unidade pós operatória especial, ligado a muitas máquinas de controlo de vida, que estava a reagir bem e que já não precisava de estar mais tempo entubado.
Soube mais tarde – já em fase acelerada de convalescença - que, naquele dia, a filha tinha desmaiado, o filho “fugido” e que a equipa médica só tinha permitido que o (doente) recebesse visita dos familiares depois de acalmar, pois, segundo os médicos de serviço, o “homem feito prisioneiro” tinha-se mostrado inesperadamente muito inquieto depois do pós-operatório, no lugar de recobro.
Foi assim : o doente não sabe, ainda, entre o sono e o delírio o que de facto se passou. Mas a dor e o pânico sentidos, esses não os esquece, continuam vivos na parte mais incerta da memória. Certo é que a vida, às vezes, tem de recomeçar com sangue, suor, pânico e que, com demasiada frequência, parece ser necessário torturar o corpo e afligir a alma para que o renascimento seja possível.
Terá de ser assim ou o doente tende a perder a sua condição de pessoa, quando mais carece desse sentimento solidário de proximidade que só o calor humano transmite ?


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