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30/10/07

A UM COPO DE VINHO

Ana Cristina Guerreiro

http://www.robwilson-images.com


Tombou a garrafa enroupada pelo triângulo branco de um guardanapo já tinto de pequenas lágrimas que verteram do gargalo e acertou com o jorro no copo.

No silêncio do almoço só o som de metal a raspar ao de leve no prato já meio comido, o pigarro de quem apura a voz para se preparar para dizer algo solene, o ruído tremendo das pálpebras que se erguem para entender palavras com calo que muitos anos haviam que todas as refeições se saboreavam no engolir e atirar para o fundo do estômago embrulhos de pedaços de vida à mistura com ácidos corrosivos que deixavam liquefeitos na vontade, o ânimo, o querer, o protestar, o sentir.

Irritava-o aquela forma gentil que ela tinha de pegar no copo e apenas tingir na ponta da língua o vinho que ele lhe servira. Irritava-o aquela forma passiva de ela aceitar sem debate o que o mundo lhe apresentava. Irritava-o que ela não se irritasse com ele.

Tomava o vinho como tomava a vida: a medo, aos golinhos, aos pouquinhos não fosse na sofreguidão de encher a boca e agarrar o néctar engasgar-se e cuspir-se, perder a compostura...

- Bebe! Uma vez na vida que seja, bebe! Descompõe-te, baba-te, embebeda-te!

Ela olhou-o, sem surpresa. Compôs o guardanapo no colo, passando-lhe as mãos várias vezes, alisando engelhas imaginárias que se tinham formado por um amarfanhar de anos.

- Bebe!

- Porque nunca me pediste para beber? Para gritar? Porque te calas nas únicas horas em que estamos juntos?

O silêncio voltou e vestiu a mesa como um paramento fúnebre, ele regressou aos talheres, ela serviu-se de mais um pouco de vinho.

- Sabes... Acho que devemos ter a decência e a gentileza de servir os outros, servirmo-nos a nós próprios, saber quando a refeição terminou, qual o vinho adequado...

- Não percebo...

- Quero eu dizer que está na altura de levantar a mesa. Por quanto mais tempo nos enganamos nós?! Até este vinho se tornar um vinagre de tão má qualidade que nem as moscas o quererão?! Sejamos honestos: já nada resta para mim, para ti... Só a delicadeza de uma boa amizade... Anda! Deixa-me servir-te: tomemos um copo pelo que poderemos ser!

Ela serviu generosamente e tocou com cuidado no copo dele em jeito de brinde.

E depois, de uma só golada vazou o conteúdo.

Ele ficou-se por pequeninos goles, sorvidos na ponta da língua, aos poucos, uns atrás dos outros.



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