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01/07/23

DA CIÊNCIA AO HIPERREAL

António Mesquita

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"Como cientista, cedo aprendi que o segredo está na simplicidade. Se não o podes explicar de modo simples é porque não o percebeste bem”, disse Einstein.

À primeira vista, temos aqui um exemplo de auto-ilusão do grande cientista. Não se percebe que a inteligência do mundo que se alcançou à custa de aturado estudo e aprofundamento, de camada sobre camada de especialização, possa ser traduzida para um leigo, sem mais aquelas, como se fosse algo de intuitivo. A simplificação de que fala Einstein é simplesmente impossível como é a tradução espontânea duma para outra língua, caso em que quem fala, concebe a ideia em toda a sua clareza, mas que só com Isso não consegue explicar-se.

Acontece que ninguém consegue viver neste ou em qualquer mundo sem a ilusão de o compreender. A "bolha", como agora se diz, pode ser o resultado da fusão de várias bolhas e irisada pelas mais elaborada justificação teórica, sem deixar o habitáculo duma ilusão sobre a realidade. O pai da teoria da relatividade, ele próprio, subestimou o alcance da sua descoberta e  chegou a uma espécie de arrependimento.

A nossa concepção do mundo é muito enformada pelos instrumentos de que nos servimos, e o primeiro é linguístico. Se não pensássemos como retóricos e segundo as divisões da gramática, o política, por exemplo, seria de todo incompreensível.

Jean Baudrillard  o filósofo de "Simulacros e Simulações", diz mesmo que o "como se" é estrutural. Porque a realidade é, talvez, a última ilusão. Algo como um vestígio da ética de uma  idade mais inocente.

Se não tivéssemos o exemplo (a antinomia) dum regime fechado e orwelliano ( e se Orwell não tivesse escrito "1984" ou o "Triunfo dos porcos"?), com câmaras de reconhecimento facial e controlo dos cidadãos que supera a ficção duma série televisiva profética do princípio do século  como "Black Mirror" (estou a pensar no episódio "Noseby" por exemplo, que anuncia a era da concorrência "urbi et orbi" pelo mérito), se não fosse esse contra-exemplo, a ideia de liberdade, especificamente, nem seria concebível no "Ocidente". O que importa, porém, é questionar se esta versão do "Big Brother", por força de algum lídimo princípio, é inconcebível, tal como as coisas vão, no futuro das nossas sociedades.  Vejamos o que diz Baudrillard, em "O fim da ilusão":

"Se o ultracongelamento era a marca distintiva e negativa do universo do Leste, a
ultrafluidez do universo ocidental é ainda mais escabrosa, visto que aqui, devido à libertação e à liberalização dos costumes e das opiniões, o problema da liberdade não
pode, pura e simplesmente, colocar-se. Está virtualmente resolvido. No Ocidente a liberdade, a ideia da liberdade, morreu de morte natural."

Não deixa de ser verdade, apesar disso, que esse simulacro de liberdade é objectivo, factual, sentido como tal. Porque " o simulacro nunca é o que esconde a verdade - é a verdade que esconde o facto de que não há nenhuma."  E, mais adiante, "A abstracção de hoje já não é a do mapa, do duplo, do espelho, ou do conceito. A simulação já não é a do território, do ser referencial, ou da substância. É a geração, por modelos, dum real sem origem nem realidade: um hiperreal."  Como as grutas de Lascaux que já só podem ser visitadas no "modo clone", para preservar as originais da degradação inevitável. Ou a múmia de Ramsés II que exposta à luz e ao ar tem que mobilizar contra a corrupção todo um aparelho científico que nos garanta a realidade do "original".

Depois do advento da Inteligência Artificial e de a sentirmos, menos como uma nova oportunidade de "progresso", mas como uma ameaça sobre a própria autonomia do humano, a citação que antecede já não soa estranha, vinda algures do universo da ficção científica.

No entanto, já em 1945, Gorges Bernanos, muito influenciado no seu anti-americanismo pela crítica da "civilização técnica", escreve estas linhas proféticas :
"Nunca um sistema foi mais fechado que este, ofereceu menos perspectivas de transformações, de mudanças [...] Quer se intitule de capitalista ou socialista, este mundo fundou-se sobre uma certa concepção do homem comum aos economistas ingleses do século XVIII, como a Marx e a Lenine."

Mas por que parar no século XVIII? Não teremos de concordar com Heidegger que é a nossa concepção da ciência que está em causa? "O isolamento e a esclerose das ciências em disciplinas separadas", a sua subordinação à técnica e a sua ausência de finalidade para além do resultado duma competição que envolve cada vez mais os estados e as grandes empresas privadas...

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