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01/02/23

NO CORRER DOS DIAS

Marques da Silva

Avinhão
(https://images.app.goo.gl/DT6ZkyncZ2Rm4JZS9)



Escrevo-te do mais improvável dos lugares. Estava longe de acreditar que pisaria as pedras desta cidade nas margens do Ródano. Há mansidão no caudal deste braço esquerdo que se estende junto à velha urbe. Esta brandura é o oposto do que vi quando um dia o atravessei na Camargue. Era o fim da tarde e o batelão que o cruzou teve de se esforçar para não ser arrastado. Mas aqui, desce tranquilo como se tivesse acabado de acordar. Na Sérvia, quase tinha desistido de Durrell, pois as suas Águias Brancas mais pareciam uma encomenda à medida da época, mas decidi aceitar o benefício da dúvida, pois muito me tinha cativado em Alexandria. Foi assim que cheguei a Avinhão, na Provença para o visitar e neste amanhecer amargamente gelado, caminho por estas ruelas estreitas carregadas de história à procura de uma padaria. Sinto-lhe a proximidade, pois chega-me navegando pelo ar o aroma de pão quente. Já uma ocasião me acontecera algo de semelhante nas travessas de Montpellier e quando encontrei o lugar de onde tal aroma provinha foi um momento feliz. É algo de semelhante que procuro na cidade que abrigou os papas do Cisma, no interior destas muralhas espessas que mandaram erguer como protecção do seu poder. No século IV, esta Igreja esteve em vias de desaparecer, não fosse o golpe de magia de Constantino, mas mil anos depois, não só governa como manda nos que governam, em nome de Deus, naturalmente. Após ter alcançado o bastão do poder, confundiu-se e misturou-se com as almas pecaminosas daqueles que mandam, quantas vezes a qualquer preço. Mas nem sempre e nem todos. Há dias, uma alta figura da Igreja peruana corajosamente denunciava em discurso à frente de uma Dina Boluarte, alçada em presidente da república do Perú, a tragédia de mais de setenta mortos a tiro pela polícia e o exército a mando de um governo da escumalha limenha. Foi uma voz autorizada e incapaz de abandonar à sua sorte aqueles dos povos originários que reclamam o que de direito merecem. Há poucos dias, Rafael Correa, antigo presidente do Equador, dizia que o império já não precisa de golpes militares para depor governos, nem de desaparecidos, antes utiliza juízes e uma imprensa corruptas. Piotr Simonenko declarava que em Kiev governa uma aliança entre a burguesia, o neofascismo e o crime organizado. Em comum têm estes governos bastardos, o apoio do «Ocidente colectivo» e dos EUA. Com que prazer o actual presidente da Assembleia da República apertava na sua época o prófugo da extrema-direita venezuelana que dá pelo nome de Juan Guaidó. E assim vamos repetindo os mesmos passos de há cem anos atrás. Em Roma, Francisco apela à paz na Palestina. Mas quem o escuta, quem ouve a voz desta Igreja que procura erguer-se em nome dos que menos têm? Os judeus do Estado criminoso de Israel, não, de certeza absoluta. Prefiro regressar às estreitas ruas de Avinhão e debruçar-me sobre a história, essa que estuda o passado e deixar que o presente se sedimente para ser tratado como deve e merece. Tinha passado um mês em Creta na companhia de Kazantzakis e no imenso diálogo que tivemos, dizia-me que vivemos um tempo de Idade Média, não no sentido negativo que quase sempre lhe damos, mas antes naquele que foi de facto, um Interregno entre o mundo Antigo e o Moderno. Esclarecia o escritor cretense que todos os momentos de interregno na história são dolorosos, é o parto de algo novo que custa a nascer enquanto o velho resiste antes de desaparecer. Teve razão antecipadamente. As democracias coloniais, entraram num beco sem saída e sem recuo e gritam desesperadamente ao verem escapulir o mando de quinhentos anos de desvario sangrento, mas a história já não regressa de onde veio. Como alguém escrevia, «os impérios morrem, matando». Ah, como gostaria de te escrever palavras doces deste mundo que nos contempla e se projecta nos nossos olhos, mas não é fácil encontrar ternura quando vivemos num espaço temporal em que um sorriso já é um acto de coragem. Lembras-te do 16 que nos levava à praia e descia a avenida em velocidade estonteante com toda aquela gente pendurada protegendo com as mãos as costas uns dos outros para não baterem nos postes de cimento que seguravam as catenárias? Foi num carro desses que um dia entrei. Era o carro da história da humanidade e foi para ele que saltei. Pé no estribo, braço enrolado no varão, por aí tenho ido todo este tempo. Nunca saltei, nem desisti, é a minha viagem para Ítaca. Sinto cada vez mais próxima a fragrância do pão a sair do forno e anseio por sentir o estalar da crosta tostada que cobre o miolo quente. Para outra ocasião conto-te o que vi nesta cidade que foi papal por cem anos. 

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