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01/10/22

LIÇÕES DE MESTRE (A FECHAR)

Mário Martins


https://www.fnac.pt/Sete-Breves-Licoes-de-Fisica-Carlo-Rovelli/



NÓS

Se o mundo é um pulular de efémeros quanta de espaço e de matéria, um imenso jovem jogo de encaixes de espaço e partículas elementares, o que somos nós? Somos também nós feitos apenas de quanta e partículas? Mas então de onde vem essa sensação de existir singularmente, e na primeira pessoa, que cada um de nós experimenta?

Nós”, seres humanos, somos acima de tudo o sujeito que observa este mundo, mas também somos parte integrante do mundo que vemos, não somos observadores externos. Estamos situados nele. A nossa perspectiva sobre ele é a partir de dentro.

As imagens que construímos do universo vivem dentro de nós, no espaço dos nossos pensamentos. Entre essas imagens e a realidade da qual fazemos parte, existem inúmeros filtros: a nossa ignorância, a limitação dos nossos sentidos e da nossa inteligência, as próprias condições que a nossa natureza de sujeitos, e sujeitos particulares, impõe à experiência. Essas condições, todavia, não são universais, como imaginava Kant, deduzindo então, evidentemente sem razão, que a natureza euclidiana do espaço e até a mecânica newtoniana deveriam, a priori, ser verdadeiras. São a posteriori da evolução mental da nossa espécie e estão em evolução constante. Não só aprendemos como aprendemos também a mudar gradualmente a nossa estrutura conceptual e a adaptá-la àquilo que aprendemos.

A informação que um sistema guarda acerca de outro sistema não tem nada de mental ou subjectivo, é apenas o vínculo que a física determina entre o estado de uma coisa e o estado de outra coisa qualquer. A substância primeira dos nossos pensamentos é uma riquíssima informação recolhida, trocada, acumulada e continuamente elaborada.

Mas também o termostato do meu aquecedor “sente” e “conhece” a temperatura da minha casa, logo, tem informação sobre ela, e desliga o aquecimento quando está calor que baste. Qual é a diferença entre o termostato e eu, que “sinto” e que “sei” que está calor, que decido livremente ligar ou não o aquecimento e que sei que existo? Como pode a troca contínua de informações na natureza produzir-nos a nós e aos nossos pensamentos?

O que significa sermos livres de tomar decisões, se o nosso comportamento não faz senão seguir as leis da natureza? Existirá porventura em nós algo que escapa às regularidades da natureza e que nos permite torcê-las e desviá-las com o nosso pensamento livre? Se algo em nós violasse as regularidades da natureza, já o teríamos descoberto há muito tempo. Não há nada em nós que viole o comportamento natural das coisas. Ser-se livre não significa que os nossos comportamentos não sejam determinados pelas leis da natureza. Significa que são determinados pelas leis da natureza que agem no nosso cérebro. As nossas decisões livres são livremente determinadas pelos resultados das interacções fugazes e riquíssimas entre os milhares de milhões de neurónios do nosso cérebro: são livres quando é o interagir desses neurónios a determiná-las. Significa isto que quando decido sou “eu” a decidir? Sim, claro, pois seria absurdo perguntar se “eu” poderei fazer algo diferente daquilo que o complexo dos meus neurónios decide fazer: as duas coisas, como, no século XVII, compreendera com uma lucidez maravilhosa o filósofo holandês Baruch Espinosa, são a mesma coisa. Não existo “eu” e os “neurónios do meu cérebro”. Um indivíduo é um processo, complexo mas estreitamente integrado.

Quando dizemos que o comportamento humano é imprevisível, dizemos a verdade, pois é demasiado complexo para ser previsto, sobretudo por nós mesmos. Temos centenas de milhares de milhões de neurónios no nosso cérebro, tantos quantas as estrelas de uma galáxia, e um número ainda mais astronómico de ligações e combinações em que eles se podem encontrar. Não estamos conscientes de tudo isto. “Nós” somos o processo formado por esta complexidade, não o pouco de que estamos conscientes.

Aquilo que é especificamente humano não representa a nossa separação da natureza, é a nossa natureza. É uma forma que a natureza assumiu aqui no nosso planeta, no jogo infinito das suas combinações, do influenciar-se e trocar correlações e informações entre as suas partes. Quem sabe quantas e que outras extraordinárias complexidades, em formas porventura completamente impossíveis de imaginar para nós, existirão nos espaços infindos do cosmos…

Novos instrumentos permitem-nos hoje observar a actividade do cérebro em tempo real e mapear com impressionante exactidão as redes intrincadíssimas do cérebro. Ideias precisas acerca da forma matemática das estruturas que podem corresponder à sensação subjectiva da consciência são discutidas não só por filósofos como também por neurocientistas. Uma delas chama-se “teoria da informação integrada” e é um esforço no sentido de caracterizar de forma quantitativa a estrutura que um sistema terá de ter para ser consciente. Mas ainda não temos uma solução convincente e partilhada para a pergunta sobre como se forma a consciência de nós mesmos.

Julgo que a nossa espécie não durará muito tempo. Não parece ter o estofo das tartarugas, que continuaram a existir semelhantes a si mesmas ao longo de centenas de milhões de anos. Pertencemos a um género de espécie de vida breve. Os nossos primos já se extinguiram todos. Somos talvez a única espécie da Terra ciente da inevitabilidade da nossa morte individual: receio que em breve devamos tornar-nos também a espécie que verá conscientemente chegar o seu próprio fim ou, pelo menos, o fim da própria civilização. Como soubermos enfrentar, melhor ou pior, a nossa morte individual, assim enfrentaremos o colapso da nossa civilização. Não é muito diferente. E não será por certo a primeira civilização a entrar em colapso. Nascemos e morremos como nascem e morrem as estrelas, tanto individual como colectivamente. Essa é a nossa realidade.

A natureza é a nossa casa e na natureza somos a casa. Somos feitos da mesma poeira das estrelas de que são feitas as coisas e, tanto quando estamos mergulhados na dor como quando rimos e a alegria resplandece, não fazemos senão ser aquilo que não podemos senão ser: uma parte do nosso mundo.

Lição final a reter: na lição anterior Rovelli interroga: o que é que aquilo que sabemos ou não sabemos tem a ver com as leis que governam o mundo? E responde: (as coisas, como uma colher fria aquecer no chá quente ou um balão esvoaçar quando deixado à solta) comportam-se como devem, seguindo as leis da física, de forma totalmente independente do que sabemos ou não sabemos acerca delas. A previsibilidade ou imprevisibilidade do seu comportamento não dizem respeito ao seu estado exacto. Dizem respeito ao conjunto limitado das suas propriedades, com as quais nós interagimos. Por outras palavras, Rovelli repete aqui o que, na primeira metade do século XX, Bohr e Heisenberg haviam dito a propósito da relação entre a mecânica quântica e a natureza (ver lição nº. 2). Ecco qua...

NB: Salvo o meu comentário final e o critério de transcrição do que me pareceu mais importante, não acrescentei nada a esta última lição de Rovelli.

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