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01/04/22

A QUINTA COLUNA DO PÓS-PÓS

António Mesquita


Russia Today



Espera-se que a informação em tempo de guerra seja mobilizadora, desmobilizadora, ou neutra, isto é, uma arma. A vantagem é a de quem a usa mais focada e  sem desvio do objectivo militar. Quem controla todos os meios de comunicação não dá nenhuma hipótese à verdade.

Se considerarmos de um lado o agressor  e do outro o Ocidente (é essa a teoria do agressor), a realidade aparece "construída" de um lado e do outro, graças ao poder da linguagem. A Ucrânia, essa está noutro plano, não o da "construção", mas o da destruição pura e simples, é a vítima desta guerra. Há quem lhe chame "barriga de aluguer" de interesses alheios.

A conversa da neutralidade quer-nos convencer de que os crimes de guerra estão de ambos os lados, a propaganda é de um e do outro e por isso uma "operação especial" como esta equivale a um dos muitos golpes dos serviços secretos americanos. Mais uma vez, a vítima desaparece por obra e graça da retórica com mísseis.
 
Bárbara Reis, no Público, lembra a propósito  da censura dos jornais de Putin "Russia Today" e "Sputnik" , a reacção do papa Francisco ao atentado contra o jornal satírico "Charlie Hebdo", em 2015, em Paris: “Não se pode ridicularizar a religião dos outros.” No resto do artigo defende que o papa não tinha razão porque não se pode censurar a  crítica da religião,  porque não saberíamos depois como impedir a censura de tudo o resto. A UE com esta medida terá entrado em contradição consigo mesma.

Que um regime laico aceite essa liberdade de crítica parece-me da natureza das coisas.  Macron aproveitou para fazer de Paty, o professor decapitado por ter mostrado numa aula uma caricatura de Maomé, um herói dos valores da República.

Fora do tempo de guerra e dos regimes liberticidas, a informação, porém,  já não é o que era. Por força da tecnologia, do populismo, do consumismo e enfim, dos aperfeiçoamentos no domínio da compreensão e dissecação da linguagem, a  peneira da desinformação consegue tapar o sol da verdade.

Graças aos novos algoritmos do "lip-synching", a sincronização do movimento dos lábios, já se consegue a partir dum ficheiro de áudio pôr Obama a dar a entrevista que nunca deu e até pôr os mortos a falar.

Entre nós,  RAP,  no seu  programa "Isto é brincar com quem trabalha", de 6 de Março, fez-nos  rir com a repetição do adjectivo veemente na boca do presidente e do primeiro ministro, quando mostravam na televisão o seu repúdio pela invasão russa. Isso não me parece muito diferente de  brincar com a religião (a nossa, ou a dos outros). Mas não deixei de ficar fascinado com a técnica e com as possibilidades de recriação da realidade, mesmo tratando-se apenas duma desconstrução da linguagem, independentemente da intenção do locutor e da gravidade do momento. Aliás, quanto mais grave, mais cómico. O problema é que não estamos a ver até onde pode chegar esta procura do efeito a todo o custo. A linguagem torna-se assim, como agora se diz, uma "construção". Os valores que as sociedades sentiram a necessidade de proteger ao longo da história, nestes tempos, não têm refúgio possível, quando os limites da "desconstrução" se abatem. 

E por que censurar Trump quando, alarvemente, contou a anedota dos caças chineses a bombardear a Rússia para a América obter o "dois em um"?

A corrosão não é, claro,  visível. Faz parte dum caldo cultural em mudança acelerada, enquanto as instituições permanecem na sua tinta de sempre. A tecnologia mudou tudo e os valores não ficaram incólumes. Pôr o presidente da república a gaguejar requer inteligência e domínio técnico.

É o tempo do cancelamento, do "woke" e de outros tropismos pós-modernos. O pior é que ninguém deseja o regresso da Censura que, aliás, só se cobriria de ridículo em tempo de redes sociais. A mordaça funciona bem em regimes autocráticos, mas nós já tivemos uma experiência de 40 anos  e não queremos repetí-la.

É um nó inextrincável. Será esta a decadência do Ocidente de que fala o senhor do Kremlin? Ele desataria o nó com uma guerra de "purificação" e uma censura ditada pela  necessidade de segurança. 

Em 1943, a França subjugada e a liberdade no exílio, fez-se sentir a necessidade de preparar o futuro e os tempos de paz com uma verdadeira regeneração. Simone Weil, como lembra, no Expresso de 18 de Março, Tolentino de Mendonça, chamou-he "L'enracinement". Em Londres, ao serviço da "France Livre", escreveu, a pedido do General de Gaulle, essa espécie de "relatório sobre as possibilidades de renascimento da França", o desejo do general sendo, para a Libertação, uma nova Declaração dos Direitos do Homem.

Com a guerra na Europa fazendo adiar para as calendas a política ambiental  que, nas palavras de António Guterres,  “está em cuidados intensivos”, parecendo nós, “sonâmbulos a caminho da catástrofe”, os esforços de paz já se confundem com o da renovação dos valores. Não para abolir a liberdade e a subversão de todo e qualquer "pensamento correcto", mas para afirmar o essencial. No caso do "enraizamento", tratava-se de levantar um país caído na anomia da crise cultural. Agora é a Europa e o Mundo que estão em causa.

Para não cairmos na armadilha do nacionalismo e de outros dogmas e censuras,  vem a propósito citar Amos Oz, o grande escritor israelita: "Existe uma teologia judaica da "Chutzpah". Ela reside na subtil junção de fé, tendência a discutir e fazer humor de si mesmo. E redunda numa reverência especialmente irreverente.  Nada é tão sagrado que não mereça uma zombaria ocasional. Podemos rir do rabino, de Moisés, dos anjos e até mesmo do Todo-Poderoso."

O povo judeu não é, infelizmente para ele, um exemplo de "enraizamento". As suas raízes estão no universal que é o que esta emergência requer como "pão para a boca".

               
            
C I N E M A

DRIVE MY CAR 
de Ryusuke Hamaguchi (2021) inspirado num conto de Haruki Murakami


Em "Drive my car", título duma canção dos Beatles, ensaia-se o "Tio Vânia", passado e presente estranham-se um ao outro. Uma mulher morre e o encenador,  seu marido, não se perdoa tê-la obrigado a viver com a mentira da sua fidelidade. A motorista que contrataram para guiar o seu carro vive com o remorso de ter deixado a mãe sob os escombros da casa. Era uma má mãe.

Mas o que me parece mais relevante é que, na peça de Tchekov, Sónia não diz as suas deixas. É muda e exprime-se por gestos. O maravilhoso texto aparece no teleponto. Mas aqueles braços e mãos contorcem-se numa dança delicada para nos "dizer" o que não é dito por palavras. A atmosfera do interior russo, com babá (ama) e samovar, a nostalgia e o "mal de vivre" tchekoviano torna-se ainda mais misteriosa. Não se compreende tudo porque a aparência não consente. Mas a mudez de Sónia parece traduzir o intraduzível.
 

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