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01/12/21

NO CORRER DOS DIAS

Marques da Silva




O dia é composto de silêncios que raramente escutamos, perdidos que estamos na ânsia de alcançarmos um destino que desconhecemos e é composto quase sempre de nada. É assim, nessa pressa quotidiana, no correr dos dias, que não detectamos as mensagens que nos deixam os momentos de silêncio. Mas aquele que nos chega pela tarde, quando a jornada diurna se aproxima do fim, nessa hora dos «mágicos cansaços» de que nos falou a poetisa alentejana, é o mais profundo dos silêncios, aquele que nos permite navegar nos sonhos, fechar os olhos e ver tudo o que desejamos, que penetra no mais íntimo do nosso ser e nos deixa nessa penumbra de bem-estar onde mora o que entendemos por felicidade. Naquele dia longínquo, de um tempo já perdido, sentados na margem direita do rio Panj que na Primavera desce dos Himalaias em torrentes caudalosas, atravessando o vale de Badakhshan, entre as montanhas Pamir e a cordilheira do Hindu Kush, sentimos chegar esse momento estimulador. Descia como uma anestesia suave, um bálsamo amenizante. Após percorrer cem quilómetros, desde a cidade de Tirchit, por uma estrada estonteante acompanhando o curso do rio no sentido inverso à corrente, deixamo-nos enlevar pela leveza da paisagem na cidade de Ishkashim. Do outro lado daquela água de cor irrepetível que descendo das alturas do Pamir, navega para Oeste até ao lago Aral, onde já não deve chegar pela extinção deste, está a cidade afegã do mesmo nome. Interrogamo-nos como podem duas cidades tão gémeas e habitadas ambas pelo povo tadjique, serem tão diversas na sua cultura quotidiana, não a que emana da história, mas a que é imposta por quem domina o poder. Do lado onde deixo o pensamento viajar, as mulheres passam por mim de rosto descoberto e, de certa forma, uma vestimenta que poderíamos dizer, ocidentalizada, se tal palavra cabe neste contexto. Do outro lado, onde não entro, o rosto cobre-se juntamente com o corpo e encerram-se ambos no interior das casas, pois da vida das ruas apenas podem escutar os murmúrios. Uma ponte separa as duas margens, mas a mentalidade religiosa, está separada de tal forma que não há pontes que as possam unir. Apesar da vontade de conhecer recusamo-nos a fazer a travessia daquelas centenas de metros. Cremos que a serenidade aqui encontrada seria perturbada pela intolerância do que, acreditamos, nos iríamos deparar. Em breve a luz nostálgica do entardecer desce as colinas abruptas e transforma a tranquilidade do silêncio num momento de melancolia e recordações. Quando despertamos num lugar remoto, isolado e penetrante, tudo é questionável. Deixamo-nos arrastar quase sem consciência, pelos movimentos lentos que nos envolvem, nos serenam, nos deixam num limbo desconhecido, quase irreal. Tudo é possível acontecer e percebemos que nestes espaços, situações de emergência possuem outra dimensão, tão diferente da que nos habituamos a viver. A rigidez das encostas montanhosas de pedra nua, escavada, solta, não nos acalmam apenas, detêm em nós qualquer ideia de velocidade, de urgência ou de uma exigência que esteja para além do tempo longo. Num primeiro momento o que nos assalta é pensar como é possível viver em tal isolamento e só mais tarde compreendemos que a ansiedade não pode morar onde não pode obter respostas. Para além da ponte situa-se o aeroporto e arrepia pensar nos aviões a descer entre paredes colossais. Quando nos dirigimos para Leste, o vale parece comprimir-se ainda mais, deixando apenas espaço para o rio e para a estrada de terra batida por onde viajamos. As montanhas erguem-se altivas, nos seus mais de três mil metros, atemorizadoras na nudez da sua pedra amarelada como se estivesse suja em alguns recantos e esfarelando-se, com sinais de contínuos desmoronamentos quando as águas revoltas descem dos seus cumes. Sentimos como uma opressão a grandeza da natureza na sua majestade e beleza e temos uma clara percepção da pequenez humana. Apetece parar a cada instante e contemplar, escutar o que surge, na mesma dimensão, como um grito e um sossego. Como se estivéssemos perdidos no universo, sentimos a magnitude do infinito e a leveza de um átomo. E quando o Inverno cobre com camadas sucessivas de um manto branco intenso tudo o que nosso olhar naquele momento abarcava, acreditamos que a diminuição que agora sentimos deve deixar-nos ainda mais mergulhados no nada que podemos ser. E no entanto, num espaço ou noutro aparecem casas isoladas e as interrogações assaltam-nos de novo. Quantos momentos carregados de beleza iludimos quando vivemos no conforto dos grandes espaços urbanos. Na pequena povoação de Darshai abandonamos a estrada ribeirinha e subimos poucos quilómetros até alcançarmos as ruínas da fortaleza que ali se ergueu. A soberba da visão que nos enlaça deixa-nos nesse extremo do espanto, da mudez, do silêncio sem fim. Imobilizados no espaço e no tempo acreditamos em tudo. Não existem impossíveis num lugar assim. O que resta das paredes espessas da fortaleza que vigiava a Rota da Seda, na contraluz da tarde que se esvai, coloca-nos no mundo do mágico e da fantasia. Por instantes a vastidão do que observamos parece tornar-se insustentável à nossa insignificância. Ao fundo, a passagem de Wakhjir, nos seus cinco mil metros cobertos de neve. E volta o silêncio. Com os sentidos paralisados ocorreu-nos à lembrança a viagem de um Verão distante cheio de preocupações e ansiedades. Em determinado momento do percurso escuta-se uma música plena de melancolia e perfeição. Apesar das parecenças percebemos que não era o som de, Para Elisa. Entre a delícia e a curiosidade descobrimos que Beethoven também escreveu o seu Silêncio. E foi esta música que ali, naquele momento, pareceu descer das Montanhas Azuis e inundou o vale de prados verdes nas margens do Panj e penetrou com a profundidade dos momentos únicos na nossa memória. Setenta quilómetros à frente, despedimo-nos deste rio e seguimos em sentido oposto à corrente do Pamir. Insistimos em não penetrar em terra afegã. Continuamos a pensar que o que encontraríamos poderia perturbar a beleza do irrepetível que estávamos a viver. Prosseguimos agora para Norte ao longo da fronteira, contornando os mais de seis mil e quinhentos metros dos cumes imponentes de Karl Marx e Engels à nossa esquerda. Já nada nos surpreendia e apenas uma pergunta sem resposta nos penetrava o pensamento com premência; com um mundo natural de uma formosura tão vasta como pode a humanidade devastar tudo com a sua avareza e opulência obscena?            


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