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01/10/21

NO CORRER DOS DIAS

Marques da Silva

(Outono, de Guiseppe Arcimboldo)


Chegaram os ventos frios, pela tarde, de mansinho. Brincam pelas ruas, intrometem-se pelos parques e jardins, abanam os ramos e arrancam as folhas que até há pouco brilhavam de verde, viçosas, rodeadas de cores. Agora despedem-se umas das outras conforme vão encolhendo entre amarelos e castanhos. Por fim, desprendem-se e deixam-se ir entre as manchas do vento. É o tempo da transição entre a alegria do Verão e a tristeza rude do Inverno. Na natureza como na humanidade é o adormecimento de uma época de sonhos felizes, de viagens, de repousos, enquanto se aguarda pelos ventos fortes e áridos soprados com energia, das chuvas intensas, caudalosas, devastadoras. Assim caminha também o ser humano e a humanidade. A vida humana sempre evolui em crescendo, desde a infância curiosa à primavera da adolescência em que acreditamos na imortalidade de um tempo sem limites. O ritmo trepidante do Verão vivêmo-lo na euforia de adultos até que o Outono se vai introduzindo na memória, nos gestos, nos pensamentos, abarcando tudo de melancolia, de recordações do tempo vivido e em que tudo se assemelha à natureza, abanando ramos e soltando folhas que se perdem no correr dos dias e as reflexões enchem-se de lugares e outonos noutros territórios e épocas. Na fluidez dos dias, chegam essas lembranças de outrora e no Outono as imagens que vemos falam-nos de primaveras, de alvoreceres de luz, radiando sorrisos, esperanças e futuro, mas quando deixamos os olhos perdidos na longitude da terra, percebemos que as imagens são de longos outonos. Os cadáveres voltaram a ser pendurados em exposição em Herat, a pérola de Khorasan, qual ironia das palavras que dizem que khorasan significa de onde vem o sol, mas na verdade nestas semanas a nossa grande estrela está no ocaso tombando na cidade onde reina a magnífica grande mesquita. O império fugiu em confusão apressada das montanhas pedregosas e estéreis por onde cavalgou Alexandre. É a segunda fuga em meio século. Roma demorou cem anos a sucumbir à sua própria implosão. O novo império talvez demore menos que os tempos são mais apressados. Roma ainda deixou ruínas da sua grandeza, mas o império que nos vergasta deixa-nos apenas pilhas de cadáveres, por todos os lugares onde passam as suas hordas armadas. Nesta debandada, matou até ao último dia. Abandonada às mãos dos bárbaros esfarrapados a mesquita azul, com os seus azulejos rendilhados e as suas cúpulas luminosas, de Mazar i Sharif, o túmulo do magnífico, parece sucumbir na mágoa da época que vive. Por todo o lado reina um grande período outonal. Grávidos os rios transbordam a Norte da Europa e reclamam leitos roubados. Chamas devoradoras explodem em sobressaltos incandescentes nas margens mediterrânicas e escorrem em rios de fogo nas ilhas atlânticas. Ardem as florestas siberianas, derretem-se gelos eternos e no Alasca canadiano as temperaturas brilham em números assustadores. As sementes morrem na terra e as colheitas que poderiam amenizar as fomes, falecem em partos prematuros. A avidez e a ganância, de uma minoria obscena, cultivadas e alimentadas pelas armadas do império, mergulham a humanidade num Outono sombrio e atemorizador. Acabou-se o nosso tempo, dizem-nos os que estudam os movimentos que nos cercam. Vivemos um Outono apressado, sem melancolia, mas com muita e pesada amargura enquanto o saque da minoria prossegue como se um Inverno medonho e telúrico não nos estivesse a bater à porta. Um ser invisível invadiu-nos a vida e acossados, escondemo-nos, tapamo-nos. Disfarçados de clandestinos, afastamo-nos de tudo. O medo paira sobre a vida. Quando percorremos as ruas nestes dias tristes e sem destino, sentimos a angústia do que deixamos, do que perdemos e já não há “homens que morriam por qualquer coisa que amavam”. Já não é apenas mais um Outono, mas antes a humanidade a caminhar sem rede sobre o último dos Outonos, em viagem para um Inverno que ninguém conhece. A vida humana numa tempestade oceânica, sem bússola e sem rumo.

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