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01/07/21

NO CORRER DOS DIAS

Marques da Silva



https://www.dw.com/pt-br/1974-revolu%C3%A7%C3%A3o-dos-cravos-em-portugal/a-505506



Não bateram, apenas tentavam abrir a porta. Do lado de dentro, Hélder sobressaltado tentava adivinhar o que estava a ocorrer. Quinze meses depois a quatro mil quilómetros de distância haveria de escutar três palavras mágicas que mudariam para sempre a sua e a vida do país, mas isso ainda não sabia, o que estava a viver naquele instante é que tentavam forçar a abertura da porta para entrar. Insistiam e diziam, quase em sussurro, «está gente lá dentro». Com o batimento cardíaco acelerado, Hélder tentava pensar, encontrar uma solução, uma saída para aquela situação que parecia descontrolada. Estava há vários dias sozinho naquele apartamento. A Mariana trazia-lhe as refeições, conversava um pouco com ele, e partia. Nas horas seguintes, lia o “Don Tranquilo” de Cholokov e escutava vezes sem conta a quinta sinfonia de Beethoven. Perdera a noção do tempo enquanto aguardava e de um momento para o outro, tudo saíra fora da normalidade com aqueles homens a tentar forçar a entrada. Ainda pensou que desistiam, mas não, insistiam e voltavam a repetir, «está alguém lá dentro». Não havia equívocos, e tinha de encontrar uma forma de abandonar o apartamento sem se deixar prender. Tudo começara no Sábado anterior, quando pelas nove horas da manhã a escória humana entrara pela República dentro. Foi acordado por um dos irmãos Farinha. Espreitou no varandim e viu que estavam no andar de baixo aprestando-se para subir. Voltou a entrar no quarto, olhou para a estante, para os livros e lembrou-se dos Jornais que colhera na noite anterior. Colocou-os atrás dos cartazes na parede, mas desistiu, era um esconderijo demasiado frágil. De novo olhou à volta e não havia qualquer buraco, reentrância, um lugar seguro. Abriu a claraboia, ergueu-se e atirou-os no sentido ascendente do telhado. Colocou os pés no chão, fechou a claraboia e um dos miseráveis entrou, falador, a perguntar o nome, que cartazes eram aqueles, os livros, «então o senhor é que é o Hélder?». Sou sim, «e o que faz»? Trabalho. Pois então fica notificado para se apresentar no dia dois na nossa Casa. Com o papel na mão, correu para o aeroporto, onde deveriam estar todos para receber o Dr. Rui Luís Gomes que tentava regressar a Portugal vindo do exílio. Encontrou o Serra no exterior do edifício do aeroporto, já de regresso, pois tinha sido negada uma vez mais a entrada no país àquele insigne Professor. Estudaram as hipóteses de fuga e Hélder sugeriu-lhe procurar refúgio em Viana do Castelo. Assim ficou acordado e seria lá que aguardaria por um novo rumo à sua vida, pois já estava decidido que não compareceria no dia dois. Apanhou o comboio, saiu em Vila Nova de Famalicão, foi ao barbeiro e mudou o visual. Almoçou e voltou a apanhar o comboio. À chegada a Viana relata a sua situação ao Freitas um bom amigo que além do trabalho tinha uma escola onde ensinava a escrever à máquina. Tinha duas filhas adolescentes e um rapaz. Hélder sempre fora bem recebido naquela casa, mas desta vez Freitas, recusou. Primeiro disse que iria falar com umas pessoas, mas no regresso foi terminante, segunda-feira teria de deixar a casa. Hélder saiu triste, não tanto, pela situação difícil em que ficava, era uma espécie de gps para os violentos, mas mais pela recusa. Nunca voltariam a falar disso, e só quarenta anos mais tarde, ao ler no jornal a morte do Freitas, soube que a sua casa era o abrigo de companheiros com grande responsabilidade, quando vinham ao Norte. Ficar em sua casa seria como trazer a raposa ao galinheiro. Hélder partiu para o Porto na manhã do dia dois, no carro da irmã do Bernardino, enregelado pela abundância do frio que se fazia sentir e pela escassez da roupa que vestia. Lembrou-se da Cristina, pelo espaço onde vivia não levantar suspeitas. Seria a Cristina ainda nessa noite a encaminhá-lo até ao apartamento da Mariana. E agora ali estava, sem saber como agir, perante aquela ameaça tão visível de poder ser arrastado pela indigência humana. Quando parecia aparente que a porta ia ser forçada, Hélder dirigiu-se para as traseiras, pela janela saltou para o telhado de um pátio térreo e alcançou o prédio vizinho em construção, encontrando uma desculpa perante o olhar surpreso dos operários, alcançou a rua e subiu uma outra paralela à primeira. No topo da mesma, onde o prédio faz ponte, aproveitando a curva, saltou para o 17 e deixou-se ir sem destino definido. Vagueou a tarde inteira na tentativa de descobrir uma casa onde ficar. Já noite e sem soluções, dirigiu-se à residência de uma prima, numa casa onde tinha vivido a infância. Explicou o que não era fácil, foi juntando palavras e teve a recepção e o acolhimento que aguardava. Através da família enviou recado à mãe com quem se viria a encontrar no dia seguinte em casa de uma antiga colega de trabalho para quem a mãe trabalhava e seria, desta vez, a mãe a procurar a Cristina que continuava a ser o contacto possível. A Cristina chegou na segunda-feira com a marcação de um encontro que o levaria para a Figueira da Foz. Hélder e a Cristina, trocaram um abraço de despedida. Nunca mais se voltariam a ver. A Figueira da Foz, foi o primeiro de muitos lugares por onde passaria as semanas seguintes. Quinze meses depois, pelas treze horas, Irina, uma senhora de cinquenta e alguns anos, de olhos azuis, aproximou-se de Hélder e disse-lhe, «ouvi uma notícia há pouco na rádio, mas só percebi três palavras, Portugal, Golpe de Estado e Spínola». Era o dia 25 de Abril de 1974.

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