StatCounter

View My Stats

01/04/21

PODE-SE MUDAR DEUS?

 António Mesquita



https://www.camarasjc.sp.gov.br/noticias/5587/projeto
+proibe+malabaristas+e+acrobatas+de+rua+nos+cruzamentos



Penso na caridade (cristã ou outra), a propósito dum livro da nobelada polaca Olga Tokarszuk, "Outrora e Outros Tempos", em que um candidato à clausura monacal é surpreendido pelo dilema que o frade lhe apresenta: mudar o mundo ou mudar Deus? No fim deste texto, transcrevo o diálogo entre os dois.

"Quem dá aos pobres, empresta a Deus". Porque Deus devolve com vantagem. Nesta troca, no simbólico, derrama-se todo o valor. Todas as riquezas são niveladas pelo Espírito. E quem dá recebe logo, pela necessidade que reduz em si mesmo.  O homem que calcula, esse perde sempre, naquela acepção. 

Um operário, que numa empresa de serviços se mantinha ligado ao trabalho das mãos, disse-me uma vez que era dos que dava esmola, apesar de saber que era mal feito, porque as pessoas assim não lutavam pelos seus interesses, nem por sair da miséria.

Isto pressupõe que a luta é uma daquelas decisões caídas do céu e que o meu operário pensa hipócritamente. A sua esmola tem o resultado imediato de aliviar a sua própria má-consciência, mas apenas para engendrar uma nova contradição. O pobre que vive da caridade é duas vezes escravo. Infelizmente, o caminho que este raciocínio deixa aos deserdados é o de morrerem à fome ou o de recorrerem à violência. O dr. Jivago dizia que o corpo do doente não é um cadáver que possa ser dissecado.

Associação alguma de indigentes é credível no plano político, porque precisaria de tudo. E o que se verifica é que não basta ter interesse na mudança para mudar, ou sequer ter existência política.

Esses pobres que foram reduzidos à exposição das suas chagas não são, contudo, os que mais comovem.  Muitos pensarão que é mais humano viver com os aleijados do corpo e da alma, em espectáculo – como símbolos contra a vaidade dos homens -, do que isolá-los. E por que  há-de ser uma solução mais justa condenar um homem à solidão do que a caridade aldeã?

Não são os que não podem ser livres que nos atingem mais fundo. É a força encadeada. Como se tivéssemos à nossa frente o resumo da sua rápida decadência futura. Impressiona-nos porque é um verdadeiro sacrifício ao Moloch. É a esses que os “bons cidadãos” querem afastar da  sala de visitas da sua cidade. Por isso, os malabaristas de rua que aproveitam a paragem obrigatória dos semáforos para exibirem as suas habilidades atingem um ponto fraco. A sua juventude, a sua dignidade, são preservadas, mesmo se à custa duma inutilidade imposta. O mito da força de vontade e da igualdade de iniciativas nunca tem um desmentido tão cruel e peremptório.  

A luta que é possível aos deserdados não é civilizada. A afirmação do direito à vida, a energia e a força varonil só têm uma saída: o crime. A uma sociedade que assim os condena à morte eles têm o direito de resistir por todos os meios. E não é esse o motivo da secreta admiração dos que vivem segundo as leis por esses outros que fazem a sua própria lei? Mas a verdadeira nobreza não se habitua. E torna a luta contra a sociedade madrasta num suicídio exemplar. O criminoso força-os ao espectáculo da sua morte e a olhar as suas mãos sangrentas

É conhecida a paixão dos americanos pelos heróis românticos da série negra do cinema. É ainda o mito do "self-made man".

No fundo, a caridade sofre uma metamorfose útil na boa consciência tanto dos conformistas como dos inconformados.

E aqui está a citação prometida do diálogo entre um postulante e um frade dos "Reformadores de Deus", em "Outrora e Outros Tempos". 

Izydor quer entrar na ordem para mudar o mundo para melhor e "consertar o mal que nele existe...", mas o frade interrompe-o: 

-Consertar o mundo...dizes. É muito interessante, mas irreal. O mundo não se deixa nem melhorar nem piorar. Tem de continuar como é.

-Mas vós chamais-vos justamente reformadores.

-Ah, meu rapaz, compreendeste mal. Não fazemos tenção de reformar o mundo em nome de ninguém. Nós reformamos Deus.

O silêncio instalou-se por um instante.

-Como se pode reformar Deus? - perguntou por fim Izydor, surpreendido.

-Pode-se. As pessoas mudam. Mudam-se os tempos. Os automóveis, os "Sputnik"... Às vezes, Deus pode parecer - como dizê-lo - anacrónico ou pode parecer grande demais e, poderoso demais e, por isso mesmo, um pouco distante demais para se ajustar à imaginação das pessoas.

-Pensava que Deus era imutável.

-Todos nos enganamos em matérias fundamentais. É uma característica puramente humana. São Milo, fundador da nossa ordem, provou que se Deus fosse imutável, se permanecesse imutável, o mundo deixaria de existir.

- Não acredito nisso - disse Izydor com convicção.
O frade ergueu-se e Izydor também se levantou.

-Vem ter connosco sempre que sentires necessidade."



Sem comentários:

View My Stats