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01/02/21

NO CORRER DOS DIAS

 Marques da Silva




Ontem trouxe-te pequenos nacos do rio e das ruas, de paisagens que se viam ou adivinhavam. Hoje trago-te o rio todo, que é como quem diz, todas as outras imagens que a objectiva foi caçando ao longo da viagem. Nestes dias, atraído pela luminosidade, mesmo que ténue, do sol, desci até essas águas que correm para o mar apertadas entre as margens. Caminhei or velhas ruas, pisei calçadas onde pedras centenárias sempre viram esse rio passar, ou adivinharam-lhe o percurso, dele terão ouvido falar noutros casos. Essas pedras que a tanta vida já assistiram, quantos dramas viveram, de quantas vidas souberam, quantos amores esconderam, entre uma esquina e um recanto, entre a folhagem de um arbusto ou a majestade de uma árvore. Em certos dias, os homens esfregam-lhes a face, dão-lhe polimento para melhor parecerem, deixam-nas lavadas, mas continuam a ver o quotidiano passar e a anotar na sua memória quantos sonhos desfeitos, quantos desejos alcançados. A cidade já não vive tanto por ali, como em tempos passados, vai mais de visita, mais em sossego, em deleite contemplativo, escutando e tentando adivinhar os segredos do tempo. Assim fui também, interrogando uma pedra, dialogando com paredes antigas, espreitando o rio por entre as nesgas das casas que se erguem colina acima. Era o prazer de uma solidão acompanhada, no pensamento e na memória, dos presentes, dos que se viam, dos que sabemos próximos, dos amigos, dos que amamos, e na imaginação do desejo, dialogando sobre mundos que se constroem e nos ajudam a empurrar a dificuldade do presente. Há um momento em que abraçamos o tempo, a paisagem, o rio, os sonhos e deixamo-nos arrastar pelo encanto do que não temos mas a memória alimenta. Subia em esforço, mas o que os olhos traziam compensava a fadiga. Hoje há um vento que abana as árvores como por vezes nos abana a vontade e nos enregela a alma. Hoje, a paisagem terá a tristeza do Inverno, não que tenha de ser melancólica, mas será coberta de tons de cinza, faltará a cor, as cores, os tons que dão alegria infinita às coisas e às pessoas. Amanhã, voo, irei pelos céus na satisfação de desejos platónicos. Cobrirei a memória com um manto de rainha e deixarei que o pensamento se solte à desfilada pelos céus. Por instantes serei eu próprio, sem destino, sem rumo, apenas voando, planando sobre tudo e sobre todos. Pássaro de asas largas, alimentarei os sonhos que acumulo na arca que transporto no sótão da vida. Há momentos em que o mundo é meu, não no sentido da posse, mas de estar nele, fazer parte dele, alcançá-lo com a plenitude de tudo o que oferece e cada um de nós saberá merecer. Depois, esta ave onde voo, perde folgo, baixa em voo rasante e deixa-me de novo onde nunca deixei de estar. Quando o sol voltar hei-de regressar ao rio, às calçadas do tempo. Foi ontem, e hoje, rodeados de sombras que nos apagam a memória, já parece ter sido há demasiado tempo. O passado terá existido?


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