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01/06/20

MEMÓRIAS

Manuel Joaquim

Gérard Castello-Lopes



Depois de muitos dias recolhido em casa por causa da quarentena, num fim de tarde, vim até à porta de casa apreciar a rua, olhar as casas, os prédios, os carros estacionados. Não vi nenhum vizinho, não vi ninguém, nenhum carro passou durante o tempo que lá estive, os lugares de estacionamento praticamente vazios. Um deserto.

Veio-me à memória os tempos de menino. Poucos carros circulavam, jogava-se à bola na rua, campeonatos com sameiras nas guias dos passeios, a casquinha com as portas da rua a servirem de balizas, corridas de arcos e de carros com rolamentos, jogava-se o peão e saltava-se ao eixo. Às vezes, pela tardinha, amarrava-se uma linha nos batentes das portas e escondidos puxava-se pela linha para as pessoas virem à porta e não viam ninguém.  Brincadeiras.

Na rua, tão pequena, existiam três sapateiros, três alfaiates, calceiras, modistas, cabeleireira, camiseiras, um funileiro, uma padaria, um fabricante de graxa para o calçado, um mercador de solas, um picheleiro, uma oficina de ourivesaria, uma oficina de caixas de estojo, uma oficina de bicicletas que tinha bilhar de matrecos, uma escola primária masculina, uma taberna com carvoaria ao lado e um tasco onde aos sábados se encontravam tocadores de viola e fadistas onde cantava-se o fado a ao desafio. Existia um grande armazém de mobílias com operários a executarem acabamentos.

Numa viela, agora truncada, conhecida pela ilha das pulgas,  mas que de facto eram duas, viviam centenas de pessoas de todas as idades. O Senhor João, que morava lá, já com mais de oitenta anos, tinha sido padeiro na antiga confeitaria Oliveira, conhecia e contava muitas histórias de vida. A Senhora Laura, muito velha, deitava cartas e fazia defumadouros para receber uns dinheiritos. As zangas eram muitas entre vizinhos. Os ciúmes, as invejas, as águas despejadas eram pretextos para insultos. Protagonistas eram duas mulheres, a peixeira, que morava na primeira casa e a Madalena, que morava meia dúzia de casas adiante. Quase diariamente havia espetáculo. E o vocabulário era espectacular. Algumas vezes intervinha a polícia. 

Nessa viela morada uma jovem que namoriscava com um trolha que trabalhava na construção do prédio com traseiras para lá. Um dia, estava ele no telhado do prédio, acima do quarto andar, a dar sinais para a moça mas com o entusiasmo desequilibrou-se e caiu dentro duma caixa de saneamento da viela. O jovem conseguiu sair do local, naturalmente com ferimentos, com a ajuda da moça. Provavelmente foi o amor que o protegeu.

Ao meio da rua havia um muro que ocupava uma parte da faixa de rodagem, com uma grande escadaria onde se encontravam várias casas. Na parte de trás dessas escadas existia um grande terreno que era conhecido pela quinta. Era propriedade de um médico da cidade que também era dono de muitas outras casas na rua. Nessa quinta existiam vários barracos onde viviam pessoas idosas, algumas sem família. Havia uma senhora que vivia na companhia de muitos gatos, que tinha o trabalho de angariar alimentos para ela e para eles.

Na cave da primeira casa do muro, que tinha entrada por um grande portão de acesso à quinta, existia um lagar, onde todos os anos o Senhor Bernardino jardineiro, que morava na rua, pisava as uvas da quinta. Havia sempre vinho doce de uvas americanas que era vendido à vizinhança. O Senhor Bernardino deixava as crianças entrar no lagar para participarem na pisa. Era uma alegria.

O Senhor Andrade, vizinho, muito velho, comerciante de mobílias, que parava de vez em quando no tasco para conversar mas não bebia, pai de filhos conhecidos na cidade, um arquitecto, e um médico, contava histórias da sua experiência de vida. Acontecimentos dos fins da monarquia e inícios da república. Através de anúncios nos jornais vendia mais mobílias em casa como usadas, que eram novas, do que as que vendia no estabelecimento.

A oficina do Senhor Costa, sapateiro, era um lugar de tertúlia e de grande discussão política. Algumas vezes fechava a porta da rua para estarem mais à vontade.

O Senhor Costa arranjou emprego numa hidroelétrica, apesar da sua avançada idade. Mudou de casa. O novo inquilino veio de uma rua abaixo. Foi o Senhor Mário barbeiro. Era o organizador das festas de S. João com orquestras de qualidade. Havia disputas entre as organizações das festas na zona, que não eram poucas. Vinham pessoas de muitos lados para dançarem e namorarem. Era uma festa. O Senhor Mário, mais tarde, deixou as barbas e os cabelos e deixou a casa e passou a cobrador do FCP. 

Todos os dias, por volta do meio-dia, passavam mulheres que vinham de longe com grandes tabuleiros de madeira carregados com baús que continham as refeições para os operários da fábrica de Salgueiros. 

Hoje existe a oficina de bicicletas, sem matrecos, uma garagem, uma drogaria e um hotel. 

É uma transformação profunda, na verdade. Mas é também o nascimento de uma nova realidade. É o processo histórico em desenvolvimento.


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