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01/02/19

UM CERTO AMARELO

António Mesquita
("Trigal com corvos" de Van Gogh)

A simbólica das cores tem mudado ao longo dos tempos. O amarelo, ligado ao sol e ao oiro, já foi um atributo dos deuses, como Mitra, na Pérsia, e Apolo, na Grécia. Na Antiga China, era a cor do imperador, centro do universo, como o astro-rei e o famoso inquilino de Versalhes. O amarelo é a cor das espigas maduras e da terra no Outono. Além disso,  há aquele ditado que reza: "se não fosse o mau gosto, o que seria do amarelo?". Mais recentemente, essa é a cor dos coletes retroreflectores que todos temos de trazer no carro.

O fenómeno dos 'Gilets Jaunes' trouxe à política uma simbologia nova, ligada às emergências da condução, ao perigo na estrada, mas também a uma situação em que o indivíduo se encontra isolado na  cápsula automóvel que é sua responsabilidade. No movimento dos 'Coletes Amarelos' não houve só um desvio de função na indumentária obrigatória. Houve uma acção colectiva, digamos, de segundo grau, porque os indivíduos conservam, de algum modo, aquele vínculo com o automóvel. Talvez por isso o movimento  tenha resistido à hierarquia e à organização. 

Percebe-se o alcance simbólico disso. A acção política e social ganha  um novo poder expressivo, um novo dispositivo de acção, quaisquer que sejam os objectivos. Envergar o colete numa acção de rua significa já uma ideia, uma posição. Porque o colete é uma espécie de farda. O movimento poderá 'fazer escola', repetir-se, para outros desígnios,  sem cair no ridículo ou na irrelevância? Não é uma profissão que identifica os intervenientes, apenas um acessório do seu porta-bagagens.  Se é a cidadania, é uma cidadania fardada.

O amarelo acaba de levar uma volta na simbologia da política e do sindicalismo. Porque é verdade que, no século XX, 'amarelos' eram os sindicatos que punham em causa a unidade operária, 'amarelos' eram os 'fura-greves'. Amarela era também a estrela com que os nazis  quiseram marcar os judeus, e talvez precisemos de recorrer  à poesia para identificar o amarelo com a traição e a cobardia (yellow), por exemplo. Assim, de um momento para o outro, o contexto parece ter tornado estas conotações inactuais. E se não é a cor dos atributos de Apolo que podemos invocar, já não é também a palidez de Judas ou de Iago. 

Dir-se-ia que isto é lateral à política, mas não deixa de ser uma mudança de referências. É como dizer que o vermelho já não é a cor da Revolução. 

Este tempo de tecnologia vertiginosa sugere-nos que talvez precisemos de aprender a viver com a mistura e o precário, onde os signos e os valores se trocam como  numa grande Bolsa.

Mas essa é a atracção própria da vertigem. E alerta-nos para esta verdade esquecida: o tempo torna-se, cada vez mais, um objecto de conquista. Não se muda de paleta, acrescentam-se novas cores. Não é o amarelo do sol, nem o da traição. É o dos coletes.


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