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01/07/18

NO CORRER DOS DIAS

Marques da Silva



Digo-te com essa certeza inabalável que a História nos traz que a anteceder os grandes dramas, vivemos uma comédia gigantesca. Olho a perfeição e pureza dos teus olhos e recordo como dizias, «Hiroxima, meu amor», e só me lembro de uma nuvem, quase divina com a sua protuberância medonha a arranhar o limite celestial. Era a grande democracia a enviar um aviso de obediência, mas os homens tardaram em ouvir e, dias mais tarde, com mais amor ainda, voou Nagasáqui, também democraticamente. Depois sim, viveu-se a democracia na plenitude da paz que sempre nos traz o silêncio dos cemitérios. Era então o fim da tragédia, pensamos todos, antes tinha havido uma enorme e sorridente farsa irónica. Contudo, a democracia pede-nos sempre mais, exigente e avassaladora vive continuamente de comédias e dramas. Com amor levou uns quantos milhões da Coreia, outros tantos no Vietname e tínhamos democracias para todos os gostos, a francesa, enterrou um milhão de argelinos, a inglesa perdeu a conta a todos os que foi deixando na berma da estrada do seu império onde o sol nunca se punha. Com amor, sempre com muito amor. A democracia dos Judeus há setenta anos que semeia amor, este com a alegria de ser divino, numa farsa que torna a hipocrisia num berço angélico, num jogo de tiro ao alvo numa barraca de feira. Mas no nosso tempo, este que vivemos, hoje e aqui, a democracia presenteou-nos com algo mais comovente a que dá o nome de «comunidade internacional». Parece uma entidade abstracta, mas é real, formada por um conjunto de democratas que tomam decisões quando só trabalha a parte sanitária dos seus cérebros. E com amor, de novo com muito amor, a roleta russa voltou a girar, Jugoslávia, Afeganistão, Iraque, Líbia, Síria, Iémen, transformaram-se em enormes necrópoles, de terras silenciosas, de gentes em fuga, tentando escapar da democracia das bombas para as bombas da democracia. Tento fugir e só encontro lugar seguro no oceano azul do teu olhar, mas sinto o medo, o temor que me encontrem e me furtem o que me resta da alegria da vida. Tento escutar o som do mundo dos sonhos, mas as palavras também escondem outros receios, ocultos e enredados nelas. “De facto, há muitos elementos dissuasores que impedem que as vozes cidadãs cheguem onde devem chegar para ser ouvidas. A comunicação de que muito se fala, torna-se tantas vezes uma ilusão. É este o problema da democracia hoje, tão mergulhada em crises e perplexidades, porque faltam instituições mediadoras, que impeçam a teoria do número, do imediato e da indiferença” (1). É de ilusões que nos falam e de mediação, algo ou alguém que se interponha entre as bombas e o amor humano e, oculto no interior dos teus olhos esmeraldinos, lembro aquela poesia que de tão clandestina na democracia sinto medo de entoar, “eu quero cantar/ cantar uma canção/ feita de sol e de mar/ feita só com o coração”. (2). Todas as noites há uma criança que grita, apavorada, perdida, longe de casa e com a mãe a ser levada para essa prisão do mundo onde nos encerra a democracia. É numa fronteira, numa qualquer linha do mundo que separa os povos e foi democraticamente traçada pela «comunidade internacional» essa plêiade de sábios que habitam uma casa vazia onde só existe uma sanita, na qual despejam o seu cérebro insalubre. Pensávamos que todas as nossas lágrimas se tinham esgotado nas areias de uma praia turca perante o olhar atónito com que víamos o rosto meigo de Aylan Kurdi beijando as ondas, lentas e suaves que lhe lavavam a face, mas não, era apenas uma parte da comédia que antecede a tragédia o drama que está para chegar, vivemos apenas ainda o tempo da impostura. A democracia revela-nos as suas capacidades e surpreende-nos sempre. Éric Vuillard revela-nos, de forma brilhante, num dos seus livros, a comédia de outros tempos, tão idêntica, tão parecida, com a que vivemos. Num capítulo a que, com sarcasmo, deu o título de «Música no Coração», mostra-nos com profunda e magoada ironia os austríacos em 1938, “A 15 de Março, diante do palácio imperial, a toda a largura da praça, até à grande estátua equestre de Carlos de Áustria, a multidão, a pobre multidão austríaca, enganada, maltratada, mas em última análise aquiescente, está ali para aclamar. Quando se soerguem os horríveis andrajos da História, é isso que se encontra: a hierarquia contra a igualdade e a ordem contra a liberdade. De modo que, induzida em erro por uma ideia de nação mesquinha e perigosa, sem futuro, esta imensa multidão, frustrada por uma derrota precedente, estende o braço para o ar. Diante dela, da varanda do palácio de Sissi, com uma voz terrivelmente estranha, lírica, inquietante, eis que Hitler conclui o seu discurso num grito rouco e desagradável. Vocifera num alemão muito próximo da língua que será mais tarde inventada por Chaplin, feita de imprecações, e em que apenas se distinguem algumas palavras dispersas, «guerra», «judeus», «mundo». Neste ponto, a multidão uiva, é numerosíssima. (…). As aclamações são tão unânimes, tão poderosas, brotam com tamanha intensidade, (…), …vieram militantes nazis de toda a Áustria, prenderam-se os opositores, os judeus, trata-se de uma multidão escolhida, expurgada; mas os austríacos estão de facto lá, não se trata apenas de uma multidão cinematográfica. Estão lá aquelas jovenzinhas alegres, de tranças louras, está lá aquele parzinho que grita a sorrir – ah todos aqueles sorrisos! Aqueles gestos! As bandeirolas que estremecem à passagem do cortejo! Nem um só tiro foi disparado. Que tristeza!” (3).  Percebes agora porque me escondo no teu olhar, me oculto do medo, eles voltaram ou nunca chegaram a sair. Não me fujas, não me abandones ao tropel desta horda. Enquanto me falarem de democracia e de bombas, de democracia e crianças a chorar de pavor nas fronteiras ou a morrer em silêncio nas praias do mundo, de democracia e salários baixos e de trabalho sem dignidade, de democracia e tortura, prefiro viver esquecido no interior do teu olhar o único refúgio seguro num mundo de vilania, observando a pequena figura de Régio, sentado e protegido por uma das colunas do Diana Bar, enquanto escreve, o que quero dizer, “Sei que não vou por aí!” (4).  
– Guilherme D’Oliveira Martins em crónica no JL, «Resistência e emancipação» comentando o livro de Lídia Jorge, “Estuário”. 
Pedro Barroso
Éric Vuillard em “A Ordem do Dia”, D. Quixote, Alfragide, Abril de 2018. Prémio Goncourt 2017
José Régio em “Poemas de Deus e do Diabo”.

A luminosidade do dia inunda o horizonte e a alma, a minha, que não se cansa de procurar a tua. Largam barcos de um cais universal num rio de sonhos e saudades adiadas. Carregam quimeras que a vida gera no nosso pensamento inquieto. Procuro embarcar, fazer parte desta armada, quero desdobrar velas, segurar lemes, aproar futuros. Quero alcançar as largas portas do infinito, içar bandeiras, desembarcar nas praias arenosas onde vive a alegria de um mundo perdido e encontrar-te. Sim, encontrar-te. Afinal é a ti que procuro.

Uma notícia do JN diz-nos que a Ópera de Budapeste cancelou a apresentação do musical “Billy Elliot”, por imposição das notícias veiculadas pelo jornal Magyar Idök «que defendeu, em diversos artigos, que os jovens que vissem a apresentação se arriscavam a “converter à homossexualidade”». A acreditar no Magyar Idök, está a acontecer o que mais temia, a homossexualidade é contagiosa. O jornal só não nos esclarece como ocorre o contágio, mas presume-se das suas palavras que será através de uma espécie de célula cerebral. «O artigo também acusou o trabalho de "propagar" a homossexualidade de uma forma que "afecta o subconsciente de menores, apenas numa idade em que você ainda pode influenciar sua inclinação"». Como todos sabemos, desde 1990 a Hungria vive numa verdadeira democracia, como aliás, está sábia dissertação do Magyar Idök bem demonstra.                   




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