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01/12/16

CARTAS DE SANTA MARIA





Córdova, 30 de Novembro


Atravessei a fronteira, essa linha geográfica e invisível, inventada pelos humanos, em lugar ermo de gentes e casas através de uma ponte de aspecto recente sobre o rio Chança. Foi a terceira vez que senti com a profundidade da ruptura a passagem entre territórios que a separação secular tornou diferentes, não na paisagem, mas na posse. A primeira foi há muito, ainda os traços da juventude conseguiam alcançar qualquer quasar, num momento em que o crepúsculo descia fazendo crescer os sons que chegavam interrompendo a tranquilidade do entardecer, enquanto a alma, a minha, viajava num mundo de esperança sonhadora. Um tiro seco ao longe e o silvo da locomotiva em manobras pareciam dar irrealidade à travessia através de um campo lavrado, aberto e amplo. A segunda foi na visita ao teu país. Inebriado pela doçura do teu olhar não me apercebi que o visto de permanência caducara e quando procurei a saída apressada, fiquei retido durante anos na terra de ninguém do aeroporto até me esquecer de quem era. Foi nessa época que iniciei a escrita do meu Diário dos Sonhos, pois naquele espaço só dois momentos me eram consentidos. De noite sonhava, e de dia, escrevia os sonhos sonhados. Nesses meus sonhos tudo era permitido e todas as mulheres tinham o mesmo nome e um só rosto. Por fim, consegui partir e iniciei esta viagem sem regresso a caminho de um lugar sem estrada e de toponímia desconhecida. A vida torna-se insuportável quando nos afastam de quem plantava flores no jardim da nossa alma, de quem a cobria com a espuma do mar adormecendo na praia, envolvendo em lentos abraços a penedia do litoral, quem semeava sorrisos pelos caminhos dessa alma, agora refugiada na torre de menagem de um antigo castelo há muito olvidado. Caminho no silêncio profundo do amanhecer. Recuso voltar a cabeça e olhar o que ficou para trás, mas sinto que a saudade do que não regressa, rasteja no meu encalço e alcança a leve sombra que o meu corpo deixa, projecção tímida de um sol nascente que teima em fazer renascer a vontade de viver. Assim, cheguei a Córdova. Escrevo sentado no Pátio de los Naranjos, olhando para a Porta do Perdão. Um Outono ameno acomoda-me neste espaço onde me isolo. Não esqueci as velhas ruas da cidade Património da Humanidade, as casas brancas, os recantos, mas perdi-me de todo no interior da Mesquita. Por entre as suas colunas, a arquitectura de um deslumbre que fascina, as cores que chegam a perturbar pela elegância. Em meu redor vivia um silêncio perturbador carregado de sons, de cânticos, de chamamentos e olhava para as pedras que me envolviam como quem contempla o olhar de uma mulher que acaba de nos encantar. Creio que foi Platão que disse que pela escada da Beleza se ascende à verdade e ao ser. Por entre as colunas pressinto a Córdova de Abderramão III, a cidade cultural mais importante da Europa naqueles séculos árabes a ombrear com Damasco, Bagdad ou Constantinopla, a sua biblioteca com quatrocentos mil livros, Maimónides e Averróis com a sua presença, a aumentar-lhe a grandeza. Quando saio daquele espaço marmóreo sinto a pequenez humana perante as obras que é capaz de criar e quando tento escrever esta cónica tão ligeira, as palavras não se soltam, como se estivessem ainda retidas no esplendor daquela casa de Deus, em nome do quem somos capazes de erguer monumentos de uma riqueza ímpar como forma de o alcançarmos. Caminho por este Pátio procurando a saída, mas parece que todos os trilhos se encerram na minha frente, como se, após a visita, ficasse cego por tamanha beleza.
Fernão Vasques*

* Por favor, não me confundam com o corajoso alfaiate que em 1371 ousou desafiar, em nome do povo, O Formoso e a futura rainha. Sou apenas um sonhador, digo eu, dos finais do século XX com endereço em Santa Maria das Júnias. São duas ruínas que se amparam, as minhas e as do mosteiro.

1 comentário:

J M Tavares Rebelo disse...

Caro Fernão Vasques,

Gostei muito da sua crónica escrita numa linguagem simples, intimista e refletida.

Escreva mais.

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