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01/02/16

CARTA À MINHA CIDADE

Porto


Minha amada cidade. Esta é uma carta há muito devida e, mais do que notícias, vai levar antes, um diálogo contigo, de apreço e reconhecimento, palavras de chegadas e partidas, mas sobretudo, dirigidas a esse teu espaço que nos surge sempre como um porto de abrigo. Território da infância, o branco e negro do tempo, das ruas povoadas de gentes, das longas distâncias percorridas, da ruralidade de lugares com sabor de aldeia, outros sons e melodias, sorrisos traquinas por entre artérias de terra solta, as escolas do velho Estado, as igrejas como adro central de encontros e reencontros, o amarelo queimado desses veículos de tracção eléctrica que então já velhos pareciam, carregados de gente cansada, viajando entre solavancos estonteantes e em velocidades que rondavam o desvario, e tu cidade, a todos acolhias nos teus bairros afastados entre as noites de pobreza e os dias de trabalho, os comboios que te atravessavam por veias abertas na paisagem. Olho hoje de longe esse teu tempo, tão distante e tão próximo, entre uma velhice que vai chegando, a minha, e a tua rejuvenescendo. Percorro-te ao longo do rio, por estas margens alindadas, o sol descendo ao longe numa balsa silenciosa, que no Outono enche as árvores de ondas carinhosas de um amarelo frágil, e pelos teus caminhos quase medievais deixo que os meus olhos se percam entre escadas e vielas, no devaneio do granito alisado por ocres primaveris. O casario descendo vagaroso ainda preso às muralhas que já não vemos, e nos teus jardins onde o verde pulsa, a memória relembra os anos de chumbo em que nas tuas sombras nocturnas e protectoras, procurava refúgio face à ameaça de negros corvos que no teu céu viviam à revelia, ocupantes usurpadores da vida. Nos teus braços serenos me acolhias e até casa me levavas, guardando-me das almas pútridas da parte lamacenta de uma humanidade sem lei. A tua cividade, o teu viver histórico, a passagem árabe, por Cristo ou por Alá e tu nas mãos do Bispo. Os teus mercadores vitoriosos, na gesta de oitenta e três desse século com o número treze, o casamento daquele que foi Mestre, as tuas gentes empenhadas nas armadas descobridoras, o porto do rio na entrada da muralha, galeras e galeões sulcando os mares e já perto da chegada ao presente, a revolta libertadora no cerco que suportaste, «já estremece a tirania / já o sol amanheceu…»[1]. Poetas, escritores, quem não passou já por ti e não se rendeu à majestade da tua grandeza, perenidade e resistência. E no desenrolar dos fios próximos, as tuas pontes. Antes em ferro, elegantes, soberbas, suspensas e eternas. De seguida a beleza do betão unindo em arco o que o rio separava. “Também já sonhei com uma ponte colorida que vinha de muito longe, pelos ares, como o arco-íris”[2]. Cidade milenar, o mundo descobre-te agora e fizeste-te ainda mais bonita para que te olhem, para que te admirem e para que de novo os meus olhos se percam em ti. E deixo-me perder no prazer de te percorrer, na calma tardia de te poder observar e sentir. É uma viagem no tempo, no teu e no meu, e redescubro a beleza de quem sempre foi belo, mas que a velocidade temporal da vida não permitia a contemplação alongada, essa que permite descobrir pelo sentimento, pela ternura dos ocasos que se despem em frente do teu litoral marítimo. E na fragilidade dos meus dias, vou agora despindo-te também, peça a peça para que esse interior escondido apareça perante o meu olhar rendido e te possa amar como se ama alguém por quem se aguardou a vida inteira e quando o dia cai com mansidão, saboreio os petiscos da beira-rio, lembrando a noite grande dessa festa única que celebra a chegada do Verão. Percorro-te então como numa despedida e os gritos das aves marinhas enchem de música os meus passos perdidos por entre as tuas ruas encantadas nos socalcos da encosta em direcção ao rio, enquanto o sol vai preenchendo de calor ameno, os recantos escondidos das tuas casas coloridas e graciosas. Um dia tocarão as flautas de uma despedida mútua e no alto da tua ponte mais majestosa como um deus Junus, poderei olhar ainda, de um lado, o teu passado longínquo, e do outro, o teu eterno infinito. Será então o tempo de seguir o voo das gaivotas e com elas acenar-te ainda uma última vez. “Tomo nos olhos delicadamente esta noite – jardim de puro tempo com ramos de silêncio unindo os mundos” [2]. Para ti, minha cidade inesquecível um abraço sentido e de gratidão.

Afonso Vaz


1 Urbano Tavares Rodrigues
2 Cecília Meireles


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