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01/12/12

CONVERSAS

Alcino Silva
José Tolentino de Mendonça




Não sei se posso dizer que conheço a pessoa, creio que não. Encontrei-o uma primeira vez em casa de Saramago e ambos dissertavam sobre a Bíblia, talvez mais sobre episódios bíblicos, sobre a Igreja como instituição, sobre a fé dos homens e a sua crença em Deus. Talvez um diálogo um pouco académico, mas um diálogo sem dúvida, o que só por si já foi bom. Tem aquele ar calmo, bonacheirão, aquelas marcas que encontro em todos os que passaram pelos seminários. Não, não entendam como juízo de valor, mas apenas a forma como os vejo. Passou mais de um ano e não voltei a encontrá-lo. Até há umas semanas atrás quando o vi, na Bertrand. Aproximei-me a medo como sempre faço com as pessoas que não conheço. Sou dessas criaturas que nunca conseguiu mandar embora a timidez. O poeta iria em breve lançar um livro e a editora achou por bem iniciar o lançamento com a apresentação de um pequeno exemplar com algumas das suas afirmações emblemáticas. Foi através dessa leitura que a nossa conversa principiou. Não foi bem um diálogo, pois seria uma pena que as minhas tonterias pudessem impedir ou cercear a expressão de quem tem óptimas palavras para a vida. Com esse receio de quem pode estar errado, lá consegui soletrar a primeira pergunta, assim como a título de introdução, o que a correr bem lá me impeliria para outros voos. Então, está de acordo, meu caro Tolentino que os amigos, essas pessoas tão próximas de nós, tão necessárias à nossa vivência, são, digamos, um bem imprescindível? O poeta, sorriu e numa mistura de serenidade e boa temperança foi desenhando palavras, «Um amigo, por definição, é alguém que caminha ao nosso lado, mesmo se separado por milhares de quilómetros ou por dezenas de anos. Um amigo reúne estas condições que parecem paradoxais: ele é ao mesmo tempo a pessoa a quem podemos contar tudo e é aquela junto de quem podemos estar longamente em silêncio, sem sentir por isso qualquer constrangimento.» Digamos então que a amizade podendo adquirir múltiplas formas é algo que evolui e cresce ao mesmo tempo, balbuciei na tentativa de prolongar o diálogo. «A amizade é uma roda que se alarga como aquelas pedras que na infância atirávamos para o lago e nos fascinavam a desenhar, na água, círculos cada vez maiores». Começava a sentir-me mais à vontade, pois não só o poeta permitia perguntas como as contestava, reflectindo, procurando as palavras, trabalhando as frases para que os conceitos não caíssem num dogmatismo teórico sem qualquer semelhança com a realidade e a compreensão das pessoas. Mas a amizade não será antes uma forma de amor?, atrevi-me numa pergunta de ousadia. «O acento da nossa cultura está de tal modo colocado sobre o amor, que nos sentimos muitas vezes sem recursos para pensar devidamente as formas e o lugar da amizade». Após uma paragem pensativa, acrescentaria, «Para a definição do nosso caminho espiritual é importante percebermos a diferença entre o amor e a amizade. Com muita facilidade adoptamos o vocabulário do amor, que corre o risco de tornar-se uma gramática sonâmbula. Dizemos «amo» sem que isso traga um estremecimento qualquer.» O diálogo tendia a alongar-se em espiral, através da qual uma resposta origina nova pergunta e alonga o braço que se desenrola. Há amigos, dizia eu, que nos fazem transcender, nos fazem sentir úteis, nos ajudam e permitem, compreender melhor o que nos rodeia, uma mais perfeita percepção do espaço e do tempo. Meu caro, começou por dizer o poeta, «A verdadeira amizade transfigura e amplia a nossa humanidade, dá-nos competências afectivas, estimula-nos a abrir o círculo, a fazer mais, a ser melhor». De novo fez uma pausa, como se procurasse terminar um raciocínio em construção, como se estivesse a obter uma razão para o edifício que desenhava. «Alguns amigos», disse recomeçando, digamos, a resposta que interrompera, «tornam-nos herdeiros de um lugar, outros de uma morada, outros de uma razão pela qual viver. Certos amigos deixam-nos o mapa depois da viagem, ou o barco em qualquer enseada, oculto ainda na folhagem, ou o azul desamparado e irresistível que lhes serviu de motivo para a demanda. Há amigos que iniciam-nos na decifração do fogo, na escuta dos silêncios da terra, no entendimento de nós próprios. Há amigos que nos conduzem ao centro de bosques, à geografia de cidades, ao segredo que ilumina a penumbra do templo, à bondade de Deus». Deus, o Deus de Tolentino chegou já no fim do diálogo, sem perturbar, sem estar a mais. Se os meus amigos estiveram presentes em toda a nossa conversa, porque não haveriam de o estar também os amigos do poeta? Nas minhas palavras ainda balbuciadas, procurei explicar-lhe que sentia os amigos como essas margens que guiam e ajudam o nosso rio nos caminhos do mar e que talvez por esse sentimento tão premente em relação a esses companheiros de viagem, experimentava cada despedida como uma perda, como algo que se deixa de forma quase irrecuperável. «A despedida talvez seja a parte mais difícil da amizade. Não se pode dizer muita coisa. Acho que aprendemos devagar, por vezes com muito custo, por vezes mais serenamente, e ambas as coisas estão certas”. Acrescentou ainda que parece haver uma tradição russa na arte da despedida. Antes de partirem, os amigos ficam juntos e em puro silêncio por uns instantes e de seguida, despedem-se com leveza como se não fossem ausentar-se. Creio que foi um pouco assim que nos despedimos. O aperto de mão suspendeu-se uns segundos e só depois terminou. Creio que ambos sorrimos e assim fomos com destinos opostos. Metros volvidos, olhei para trás e pensei, nem eu irei para o Céu, nem ele será comunista, mas que importa se podemos caminhar juntos na Terra?



As citações foram retiradas do livro, Nenhum Caminho será Longo, José Tolentino de Mendonça, Paulinas Editora, Outubro de 2012

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