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01/06/10

PEÇAM TUDO…

Alcino Silva

Burning of Persepolis by Alexander of Macedon


As cores da manhã distendiam-se com leveza perante o êxtase do nosso olhar, perdido entre o céu e a terra. Ao longe, muito ao longe e num plano cada vez mais inferior a pequena aldeia tornava-se a todo o instante diminuta e os sons soltavam-se longínquos como espalhados ao sabor da manhã, chegando nesse rumor de algo que acontece sem percebermos onde. O verde dominava a vastidão da paisagem. Não um verde único, pois o que não se repete, não se multiplica, não se desdobra, não alcança o mesmo efeito da diversidade. Eram muitos verdes que se espalhavam por esse espaço aberto ou escondido das encostas montanhosas da serra. Quando o horizonte encontrou os olhares, percebeu-se esse momento irrepetível da grandeza da natureza. Entre a luminosidade do azul do universo e o das águas e o verde que atapetava o chão, uma brisa de vento correu, como uma espátula espalhando as cores numa pintura singular de encanto e fantasia. Esse ligeiro soprar do ar a arrefecer o calor fez voar o pensamento pelos tempos olvidados da história.

Os ventos da tarde rodopiam cansados sobre as terras poeirentas do sul da Pérsia e arrastam consigo o que resta do império Aqueménida. Os seus poderosos reis afundam-se no incêndio de Persépolis. O fausto real erguido em séculos de pompa e conquista naufraga perante Alexandre e os seus exércitos. O poderio persa esmagado e destruído perante o civilizado macedónio. Não mais, a história, a nossa, abandonará essa construção, dos europeus, sábios, civilizados, grandes e poderosos, em contraposição aos que apagaram, aniquilaram, esconderam nos escombros da história. Interrogamo-nos até onde teria chegado este general caso a morte não o surpreendesse e, recordamos a sua inteligência, a sua estratégia, a sua capacidade militar, o império que semeou em terras da Ásia e, ainda, Alexandria, essa mítica cidade mediterrânica que fundou. Sobre as ruínas fumegantes de Tebas e Persépolis também passou Alexandre o conquistador e da morte dos seus povos, olhamos com a nossa complacência, como um facto necessário, sem alternativa, compreensivo até. A destruição em nome da civilização, sempre da nossa, porque única, aparece até como um acto ressurreccional.

Dez séculos depois, outros homens, menos inteligentes, mas também europeus e civilizados, sobretudo aventureiros sem escrúpulos, desembarcam nas costas sul-americanas e farejam ouro na cordilheira andina. A diferença dos estádios civilizacionais visível na técnica dos utensílios militares vai provocar uma hecatombe das civilizações que encontraram, a qual se transformará num dos maiores genocídios da história, documentada por alguns dos personagens que o viveram. Hoje, utilizando métodos que a ciência disponibiliza, tenta-se inverter os factos, atribuindo-se aos autóctones a sua própria destruição e, ilibando-se ou diminuindo o peso da responsabilidade criminosa do castelhano Pizarro, Francisco de seu nome, e dos homens que comandava, iludindo-se que a Europa enriqueceu nesses séculos, mamando das riquezas espoliadas aos povos que foram passados a fio de espada, os quais aparecem aqui e ali, representados como figurantes primários em confronto com esse branco e civilizado continente europeu.

Quinhentos anos passados, uma matilha de especuladores financeiros, mandadores sem lei num mundo por si concebido à justa medida dos seus interesses, espolia os povos e os Estados até ao esgotamento e quando se aguardava, ou seria legítimo aguardar, que fossem aprisionados e expelidos como um vulgar excremento, chegam-nos discursos recomendando compreensão e bom senso, o que traduzido em linguagem corrente, significa, servilismo e cobardia. Milénios de esbulho e desmandos, de tulhas fartas, de crimes e genocídios, a mesma civilização de Alexandre e Pizarro, pedem-nos para nos auto-acorrentarmos como cativos e frouxos, reservando a dignidade para esse canto onde repousam os objectos inúteis que um dia o acaso nos fez encontrar

Centenas de séculos de história percorridos e repetem-nos o discurso da cobardia, do amansamento das ideias e dos actos, enquanto os alforges engravidam de riqueza até transbordarem como uma baba formada sobre a vida daqueles a quem destinam apenas o lugar onde assenta o pavimento por onde correm os carros de todos os Alexandres e Pizarros que a história pariu.

O olhar recupera de novo o domínio da paisagem enquanto segue o voo planado da ave que desafia as alturas. A pedra dura que o tempo não venceu, mantém intactas as formações graníticas desenhadas no nascimento do planeta. A mão humana esboçou o imenso lago que se estende ao longe, nessa captura de água geradora de energia. A brisa arrasta cânticos suaves e profundos e voltamos a sentir as terras poeirentas tapando lentamente a grandeza de Persépolis e, baixo e lento, um som penetra-nos o pensamento. Só temos nas mãos, palavras, escritas, faladas, ditas e com elas construímos a vida. Peçam tudo, ou quase, mas não peçam às palavras para serem servis e cobardes, mesmo disfarçadas metaforicamente como bom senso e compreensão. Recordando as palavras cantadas de Luís Cilia, «recuso-me ao silêncio e à mordaça/ e embora, a minha voz de nada valha/ que me fique ao menos a consciência/ de que tentei romper esta muralha».


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