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01/10/09

OS INTELECTUAIS E A SUA DEMOCRACIA

Alcino Silva


O livro chegou às livrarias com muito alarido, muitos anúncios, muitas palavras elogiosas e, se hoje em dia tais atributos devem gerar em nós o activar das defesas do pensamento, não significa que a curiosidade e o desejo de conhecer não nos levem à procura do que parece ser diferente. Uma ou duas vezes olhei de soslaio para o "Um Mundo sem Regras" deste Amin Maalouf que nos havia mostrado "As Cruzadas vistas pelos Árabes" e fui deixando para ocasião próxima o conhecimento do que nos diz este intelectual francês de nascimento árabe. Até que mão amiga me trouxe à leitura o pensamento deste escritor que já foi ou ainda é jornalista. Tenho de confessar que a desilusão nasceu com as primeiras linhas. Percebi de imediato, não por inteligência minha, mas pela clareza do discurso que não nos vinha trazer esperança mas apenas o consolo da servidão, dessa que se aloja em nós e nos mostra um mundo de vencidos com a sorte já trazida nos genes da nascença. Acresce que nem sequer é novo o discurso. Já outros, noutro tempo e noutras crises do capitalismo nos trouxeram este discurso amaciador. Sim, capitalismo, a palavra que o poder descobriu no ano transacto. Guardada em gavetas sebentas, voltaram a reeditá-lo para explicar essa trombada que se abateu de novo sobre os pobres, sempre sobre os pobres e de alguma forma sobre todos aqueles que lhes estão próximos, mesmo que a vida lhes possa proporcionar algum conforto material e espiritual. Maalouf utiliza apenas cinco vezes a palavra capitalismo, a medo e quase escondido. O que gosta de falar mesmo este intelectual francês que se serve do nascimento e adolescência libanesas para melhor se colocar numa posição de crítica ao mundo árabe, o que gosta mesmo de falar é do Ocidente e da comunidade internacional. Ah, senhor Maalouf as coisas que poderíamos contar do nosso Ocidente e da comunidade internacional. Creio que sabe do que falo, mesmo não dizendo. Diz-nos a certo passo, que "Após a queda do Muro de Berlim, soprava um vento de esperança no mundo". Para quem soprava esse vento? Não me diga que acredita no que escreve. Não consigo levar tão longe a sua ingenuidade. Ao longo das quase 200 páginas do livro coloca-se no pedestal de uma pretensa esquerda que por cima das calamidades, das desgraças, das violências, dos dramas, que esta casta que nos governa provoca no mundo, para perguntar o que pensam uns e o que pensam outros, ou dito talvez de outra forma, o que pensa a esquerda e o que pensa a direita. Sim, pois, que eu Amin Maalouf aqui estou para com o meu discurso de alta moral dizer o que está errado no mundo e o que está errado na acção de uns e de outros, enquanto no seu conforto e no seu comodismo, vai usufruindo das migalhas que essa casta vai deixando nas margens do caminho. Enquanto leio este "Um Mundo sem Regras" o canal Odisseia vai passando o documentário sobre os acontecimentos no Chile há 35 anos atrás. A vitória de Allende, a esperança, sim a esperança senhor Maalouf, mas dos pobres, não dos pobres de espírito como o são alguns intelectuais ou seus imitadores, mas daqueles que são capazes de sonhar com um mundo diferente, mais justo, mais equilibrado, mais equitativo, sem Ocidente e sem comunidade internacional, esses pobres a quem Allende passou a distribuir um litro de leite por dia. Sabe senhor Maalouf o que pode ainda hoje significar um litro de leite por dia? Não sabe e se já se apercebeu, certamente que disfarça como o faz no seu livro. E finalmente o golpe, os militares chilenos utilizando as armas para defender os interesses do Ocidente e da comunidade internacional, os mesmos interesses pretorianos que vão sustentar 25 anos no poder esse excremento que deu pelo nome de Augusto Pinochet. Diga-me senhor Maalouf que fala horrorizado dos mais de 3 000 cidadãos dos EUA que morreram nas Torres Gémeas, porque não diz uma única palavra sobre os mais de 30 000 chilenos que morreram nas prisões, desapareceram ou ficaram prisioneiros e exilados durante largos e largos anos, também no dia 11 de Setembro? Sim, é verdade o senhor diz que há certas coisas que não deviam ser feitas mas com que condescendência o diz, o menciona. O resto são críticas ao mundo árabe unindo na mesma expressão essa elite bastarda que está no poder e faz parte do seu Ocidente e da sua comunidade internacional e aqueles que mesmo seguindo caminhos errados, quem não erra quando se percorrem caminhos novos?, procuram uma estrada diferente para as populações árabes. Que cómodo que é o seu discurso. Pena é que o canal Odisseia nos traga novo documentário, desta vez sobre as crianças de Faluja que nascem deformadas, monstruosas nas suas formas e feições para desespero das mães que se recusam a gerar filhos para não viverem esse drama de amamentarem crianças disformes que foram deixadas pelas bombas do seu Ocidente e da sua comunidade internacional plena de liberdade e de liberdades.

Não, o meu mundo não é nem podia ser o seu. O senhor Maalouf é um escritor famoso, conceituado, ganha certamente muito dinheiro, tem mesa farta e permite-se dar recados ao mundo, sobretudo ao mundo que obedece. Sou tão só uma pessoa simples que do mundo apenas pode escutar e não deixarei de reflectir nas suas palavras, mas não se iluda, pois estou crente, sem fé, apenas acredito, que muitos outros como eu seguirão outro caminho, não o da obediência, não o da sujeição, não o do pensamento castrado ao conforto e ao comodismo de alguns valores materiais. Com muitos erros, muitos defeitos, imensas imperfeições, mas sobretudo, com muitos sonhos e muitas utopias a gerar certezas continuo a escutar vindo dos subterrâneos da Terra, da lonjura dos tempos, talvez até do infinito das estrelas, vou escutando todos os dias provindo do fundo da estrada da vida, a voz doce dessa Simone brasileira murmurando em poema cantado,

"caminhando e cantando e seguindo a canção (…) Vem, vamos embora que esperar não é saber, quem sabe faz a hora não espera acontecer".

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1 comentário:

HELENA MARQUES disse...

Parabéns. O seu desabafo literário tocou.me profundamente e neste mundo sem esperança, é bom ouvir palavras assim.

Helena Marques

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