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30/08/07

A AGULHA E A LINHA

http://www.uweb.ucsb.edu/~ian_kannry/Hands



Vivemos num mundo de formas, em que estranhas correspondências parecem unir reinos distantes, tal como o de um utensílio do quotidiano e um modo do pensamento.


A agulha e a linha, por exemplo.


A primeira é a ponta dura que guia o fio flexível, fazendo-o passar entre dois tecidos de modo a fixá-los um ao outro numa costura. A linha mole é arrastada no vaivém da agulha, presa que está ao seu orifício, por onde, diz a tradição, não há-de passar um camelo, mas o texto sagrado querendo, provavelmente, dizer apenas uma corda. Coisas da tradução das línguas mortas.


E onde é que está a ideia, afinal?


Pois a mim parece-me que no nosso verboso discorrer utilizamos uma espécie de agulha, com o seu fio.


A ponta dura que abre caminho, e protege ao mesmo tempo, como num autocarro cheio é mais fácil seguir na esteira de um homem corpulento para nos aproximarmos da saída, é aqui representada por aquelas fórmulas consagradas e pelas figuras de retórica que parecem sempre provar mais do que se lhes pede e dizer mais do que o que dizem. Aberto o caminho no espírito dos auditores por um "até quando (Catilina)?", ou um "é assim:" (hoje empregue até à exaustão), ou um "logo" (de "penso, logo existo"), é mais fácil o fio mole do nosso discurso ir entretecendo a sua trama ou cosê-la num pesponto.


Esta "agulha" é tanto mais necessária quanto aquilo que dizemos ou anunciamos for uma novidade, ou um pensamento original, que, naturalmente, encontrará o espírito dos outros à defesa, senão de orelhas moucas.


E a razão é, como dizia Alain, que a invenção, numa conversa, viola uma das regras da cortesia que é a de respeitar a "soberania" do outro, em vez de tentar tomar de assalto com um simples argumento lógico ou um efeito de sintaxe aquilo que o outro pensa.


Por isso é que, quando a nossa tropa se mostra a descoberto (ou o bosque de Birnam se move, como no "Macbeth"), já há muito o nosso interlocutor levantou a ponte levadiça.


E podíamos levar mais longe a analogia entre a arte da costura e a retórica, olhando para esse instrumento militar (à escala embora da cabeça de um dedo) que é o dedal. Ele serve para evitar que sejamos feridos pela agulha, quando o jogo do seu vaivém adquire uma certa velocidade.


Ora, o que são, perante a eloquência, a ironia e o trocadilho, numa palavra o cepticismo, senão o dedal com que nos defendemos da penetração da agulha nos pontos mais sensíveis?


E isto, evidentemente, tanto no que declamamos a nós mesmos como no que ouvimos aos outros.

António Mesquita


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