01/06/25
NO CORRER DOS DIAS
Kondopoga, Lago Onega. Carélia. Conheces a minha procura dos
grandes lagos, recônditos entre o dorso de montanhas verdes, mas este é longo e
largo, mas as margens são planícies de verdura, esta cor que cobre todo o
horizonte que nos acolhe. Cativa-me a placidez do que nos rodeia, o olhar
perde-se numa mistura de sonho e fantasia, enquanto as águas parecem
imobilizadas como retidas num cerco que não termina. As árvores, os arbustos e
as altas ervas floridas aparecem-nos como uma floresta impenetrável, mas que
nos protege. Ao final da tarde procuro o sossego que rodeia a Igreja da
Dormição. Deito-me no abrigo das ervas marginais e descanso a alma enquanto
dialogo com o horizonte. É a Carélia, a terra da língua veps ou vepsiana, uma
língua fínica que aqui convive com o russo. As águas entram pela terra dentro
como se fossem fiordes, mas sem montanhas. Esta pequena cidade com cerca de
trinta mil habitantes é atravessada por um canal de ligação entre dois lagos
cuja existência enquanto lugar urbano ocorreu no século XVI, mas evoluiu a
partir do século XVIII com a descoberta de pedreiras de mármore. Por aqui passa
o comboio que de Moscovo desliza para lá do círculo polar Árctico, até à cidade
de Murmansk. É o espaço dos duendes e dos mitos que vemos representados através
de estátuas esculpidas na madeira. Deixo-me adormecer em pensamentos
longínquos, em viagens que me levam pela história, da humanidade, dos seres
humanos e tudo o que a eles é inerente, mas esse trilho que me leva para trás,
aparece quase sempre ocupado pela violência, a avidez, pelo lado obscuro da
mente humana. Os sobressaltos que impulsionam essa vivência aparecem sempre
toldados de obscuridades sombrias de armários cheios de esqueletos, de muita
infâmia e de acções vandálicas. Podemos fugir, como faço agora, mas não nos
podemos esconder, menos ainda, esquecer. A mão sangrenta dos abutres
alcança-nos em qualquer lugar do planeta, tão azul olhado a partir do espaço e
tão negro quando o percorremos. Quantas estradas já andarilhei no silêncio de
florestas silenciosas e quando parece tudo envolto em segredo, as notícias do
mundo caem-nos como hienas famintas sobre o pensamento e a memória e
dilaceram-nos a alma. Como é possível a vida prosseguir quando diariamente um
povo aparece esmagado por um extermínio impiedoso, no fragor da fome e das
toneladas de bombas. Esgotaram-se as palavras, a paciência, a infâmia perdeu
sentido, tudo o que sabíamos que pudesse classificar a maldade, perdeu razão de
ser. Nem a escória nazi sentiu tanta impunidade. No final tentaram esconder os
crimes, chegaram a negá-los ou a atribuí-los a terceiros. Mas estes fanáticos
enlouquecidos, dementes e desmiolados, afirmam-no diária e publicamente em
directo. Já não é possível sequer admitir a convivência humana com esta espécie
rara de idolatras. Numa paragem do caminho, nesses instantes em que isolas o
pensamento, alguém fala em voz alta de direitos bíblicos. Penso na Bíblia como uma carta de valores
éticos e morais a cumprir pelas sociedades humanas acabadas de se sedentarizar
e erguer os primeiros núcleos urbanos e, como o ser humano tem sido tão igual
nos seus comportamentos em qualquer momento do seu estado de evolução, esses
valores podem facilmente ajustar-se a qualquer instante da vida humana. O que
já não é possível de aceitar é quando alguém acredita acordar há três mil anos
atrás e arrasar tudo à sua volta para dar enfâse a um estado milenar de loucura
no presente. A História diz-nos com elevados graus de certeza que tudo isto não
vai terminar bem e Deus por vezes também tem de ser impiedoso contra aqueles
que o pretendem substituir. Ao deixar Vladimir, durante longo tempo detive o
olhar sobre a Porta de Ouro, a sua grandeza, o baluarte das suas pedras, o
volume da sua monumentalidade, a resistência à passagem do tempo, o atravessar
dos séculos, assediada, quase vencida, mas sem nunca desistir de existir, de
resistir ao tempo e às intempéries da brutalidade humana. O mesmo viria a acontecer
quando atravessei Suzdal e extasiei os olhos na Catedral da Natividade, nas
suas formas e nas cúpulas cheias de azul celestial. De certa forma, ambos os
espaços arquitectónicos, Património da Humanidade, representam a beleza e a
resistência como se cobrissem a iniquidade com um manto de pureza. No entanto,
quando a Europa repete a história de há cem anos e as forças que encaminham o
continente para os braços da ignomínia militar e senhorial, tanto de Kiev a
Lisboa como de Roma a Estocolmo, quando, aqueles que lhe deviam barrar a
passagem, lhe estendem de novo, tapetes cor de rosa para desembarcarem,
sentimos que o futuro se encaminha mais uma vez para o abismo. No silêncio
adormecido das margens do Onega, estes pensamentos desembarcam sem aviso na
minha memória, quando procuro descansar nestes momentos finais do dia nos
arredores desta pequena cidade destruída em 1941 pelo exército finlandês que
invadiu estas terras para se juntar às hordas nazis e fechar o cerco de
Leninegrado, onde centenas de milhares de pessoas viriam a sucumbir ao longo de
três anos, à fome, ao frio e aos bombardeamentos. Quando percorremos a alameda
central do cemitério de Piskarievskoie ao som da música de Bach com a estátua
da mãe pátria ao fundo oferecendo um ramo de oliveira com um ar pungente no
rosto, sentimos um estremeção na consciência que abana a racionalidade humana
até aos alicerces do entendimento. Por aqui, o dia tomba, devagarinho, numa
espécie de despedida entre a melancolia e a tristeza e não sabemos se desejamos
regressar ou aguardarmos pela chegada da noite. Amanhã prossigo para Norte. O postal
segue de imediato.
JORGE MÁRIO BERGOGLIO
Ouvi, em tempos, a um padre franciscano, dizer que “enquanto um jesuíta faz de um labrego um doutor, um franciscano faz de um doutor um labrego”.
Decerto que o cardeal Jorge Mário, aquando da sua eleição como Papa, escolheu o nome de Francisco, inspirado pelo exemplo de austeridade e pobreza do frade católico, que viveu e morreu em Assis, na actual Itália, no século XIII, Giovanni di Pietro di Bernardone, o qual viria a adoptar o nome de Francisco, canonizado dois anos depois do seu falecimento como S. Francisco de Assis.
O que explica o sucesso, no campo ocidental, do Papa Francisco, será a sua mensagem vertical do que devia ser, à luz da pregação de Cristo, credibilizada por uma vida simples, a qual não se confunde com a horizontalidade da arte mutável do possível que é a política.
O exemplo mais contrastante entre a mensagem papal e a acção política que marca a actualidade, é o acolhimento incondicional dos emigrantes e refugiados, que buscam melhores condições de vida ou tão-só sobreviver, defendido pelo papa que agora nos deixou, enquanto a política, acossada por demagogos, (mas também pelo medo do estranho experimentado pelas populações instaladas, a que não são alheios o choque dos costumes e os atentados de natureza religioso-civilizacional), “regula” a sua entrada e permanência.
A Moral fundada no conceito cristão de irmandade humana, esbarra na errância e pragmatismo da Política, já que a maioria dos eleitores segue e influencia os ditames políticos, mal-grado o desconforto causado pela mensagem papal, que desafia as suas consciências.
Mutatis mutandis, o mesmo se diga sobre a economia “que mata”, na expressão papal, ou sobre a corrida insana aos armamentos. Apesar de protestos aqui e ali (lá onde eles são permitidos), aceita-se passivamente o “jogo” económico vigente. Enquanto que a insânia armamentista, paradoxalmente, serviu, até agora, uma paz entre potenciais beligerantes nucleares, não permitindo, sob risco de destruição mútua, que os antagonistas extravasem certos limites.
Quer isto dizer que a Moral é dispensável? Longe disso. Na esteira de Kant (para quem, em última análise, a Moral é o que nos distingue do mundo animal), ela é uma espécie de farol de iluminação dos caminhos que, sempre que se apaga, nos conduz à perdição.
POESIA
Helena SerôdioO GRANDE CARNAVALHoje houve um eclipse total.Desceu um manto de treva sobre o solE eu vou ter a coragem de enfrentar o mundoE assistir friamente á vida!Quero vestir o disfarce de palhaçoE ir para a ruaTomar parte no grande Carnaval !Vou tirar a venda que me cega,Para viver a paisagem sempre igualDos que têm olhos e não vêem,Porque o seu horizonte é um muro brancoE o espaço uma linha imaginária.Vou selar a minha boca com mentirasPara falar a verdade de outras bocas,E transformar o meu cérebro num robotMecanizando todos os meus gestos.Quero esculpir na pedra brutaOs meus sentidosE fazer do coração um Pierrot!Vou enforcar-me nas ameias do meuCastelo de fantasmas,Destronar todos os meus ídolos,Deter os voos do meu pensamentoE amordaçar todos os meus gritos.Quero não ter fome além da fomeE jamais ter sede além da sede.Quero ser simplesmente um instrumento,Um boneco de pano que se rasgaNumas mãos curiosas de criança,Ou um corpo opacoFlutuando no vazio metálico do tempo!Hoje,Porque se apagou a luz do solE a terra inteira anoiteceu,Vou autopsiar a minha almaComo na morgue se disseca um cadáver,E enchê-lo de trapos e serrim!E talvez , então , eu consiga não ser eu!...EXALTAÇÃOAmemos, meu amor, que o sentimentoExaltará a nossa mocidade,A loucura febril da nossa idadeQue mais tarde será esquecimento…Que as nossas vidas sejam um momentoEm que caiba perfeita a eternidade,E nessa hora de plena liberdadeDisfrutemos do nosso encantamento…A vida não é mais do que o presente,É sonho de melódicos harpejosDesferidos à luz de um sol poente;E enquanto em nós viver esse fulgor,Façamos um altar dos nossos beijos,Sagremos de mãos postas nosso amor!...
A ROLETA
TRAVESSIA
48 Anos de Salazarismo, 42 de instauração do fascismo com a publicação do Estatuto do Trabalho Nacional em 23 de Setembro de 1933, 50 anos de democracia, e agora, com as eleições realizadas no passado dia 18, um novo quadro político que se apresenta e prepara para acabar com o que ainda resta do que foi conquistado com a revolução do 25 de Abril de 1974.
Serão necessários mais 50 anos para reconquistar o que se foi perdendo ao longo do tempo e o que preparam para destruir o que ainda resta?
Em nome da estabilidade (de quem?), (“tretas e tangas”) aceitar a destruição do SNS, das bases do ensino, das leis laborais, de salários e pensões, arrastar o país para a guerra é aprofundar a instabilidade de grande parte das pessoas, é o caminho para concluir o processo contra-revolucionário e liquidar Abril. Os programas de governo de quem vai governar apontam nesse sentido. Será que vamos assistir a tudo isto, com a conivência e apoios de muitos ao arrepio de valores que apregoam?
Arlindo Oliveira, académico e investigador, publicou no jornal Público, de 5 de Maio passado, o artigo “Admirável mundo novo”, interessante para melhor perceber uma realidade que às vezes nos escapa e que passo a transcrever parcialmente:
“A verdade é que em muitas democracias ocidentais uma grande parte da população tem pouca educação e uma limitada compreensão do mundo, não necessariamente por falta de capacidade intelectual inata, mas pelo subfinanciamento sistémico da educação pública, pela forte influência das religiões, pela prioridade dada à memorização mecânica em detrimento do pensamento crítico e pelo domínio da componente de aquisição rápida de factos face à discussão profunda de ideias e conceitos.”
Se tivermos presente que as notícias que vemos, ouvimos e lemos são transmitidas principalmente por seis grupos económicos, que dominam toda a comunicação, as narrativas apresentadas são para servir os seus interesses e não a verdade. São narrativas que condicionam a vontade e a decisão das pessoas.
Bárbara Reis, jornalista do Público, publicou em 28 de Maio, o seguinte: “Ventura entrevistado 61 vezes nas TV, mais do que Rio e Montenegro juntos."
Há anos que se discute se as televisões ”levavam André Ventura ao colo” dando-lhe mais voz do que aos outros políticos. Um jovem estudante de jornalismo acaba de mostrar que foi exactamente isso que aconteceu.
João Pinhal, da Universidade Nova de Lisboa, trouxe luz para o debate sobre o papel dos média na ascensão do Chega.
Pinhal que tem 20 anos, contou uma a uma, todas as entrevistas que as televisões públicas e privadas fizeram ao líder do Chega, André Ventura, e ao líder do PSD, Rui Rio ou Luís Montenegro, entre Outubro de 2019 e Julho de 2024 (este período inclui os primeiros meses de Montenegro como primeiro-ministro).
Já assistimos a várias situações em que as pessoas optaram por decisões políticas que vieram a verificar que eram contrárias aos seus interesses e arrependeram-se. Agora vamos assistir a novos arrependimentos, mais cedo do que tarde, quando começarem a sofrer as consequências das suas opções.