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01/06/22

ATERRAR

António Mesquita

"Woodland Prayer" de Egon Schiele, 1915



"Tudo o que está unido fragmentar-se-á e tudo o que se fragmentou voltará a reunir-se. Foi sempre assim."
         Romance dos Três Reinos" (Luo Guanzhong, século XIV)



A marcha das mulheres no domingo (22 de Maio). Carros da polícia atravessados na avenida, logo de manhã. Horas depois, a carreira das blusas fúcsia com a mochilinha da EDP às costas e as canções que uma voz popular ia atirando no altifalante: "Cheira bem, cheira a Lisboa", "De quem eu gosto, nem às paredes confesso." Woman Power?

Parece que estamos todos, homens e mulheres, a descobrir um continente submerso. Pelo mundo fora, é na ciência, na política, nos tribunais, para não falar das artes que a presença feminina se faz notar, cada vez menos como um  caso isolado para se aproximar daquilo a que uma igualdade legal e ideal há muito tempo cometeram como meta. Mas aterremos, aterremos.

Mc Luhan, o célebre mediólogo dos anos sessenta dizia que o homem é pouco mais do que "o orgão sexual do mundo da máquina". Nessa lúgubre visão, a humanidade tem vindo ao longo dos tempos a libertar o génio que nos trará um futuro livres de nós mesmos, das nossas paixões e tragédias, cumprida a função de perpetuarmos um estado de coisas ou de "máquinas" em sintonia com a "harmonia" universal. 

A tecnologia é um dos nomes desse génio. Onde vai a incompreensão dos luditas do século XIX ou dos trabalhadores e empresários no filme de Mackendrick ("O Homem do Fato Branco", 1951), quando a personagem interpretada por Alec Guiness inventa um têxtil sempre limpo e potencialmente eterno, com as consequências previsíveis para o capital e para o emprego? Hoje, confiamos numa espécie de messianismo tecnológico que nos dispensa de pensar nos problemas mais urgentes, cuja consideração, para piorar as coisas, não se coaduna com a cizânia dos interesses particulares, de estado, de nação ou de religião.

Quer seja nas condições de vida em todas as latitudes, quer na extensão dos direitos a nível global, não podemos senão desejar a igualdade como princípio tal como foi estabelecido pelas Luzes da filosofia ocidental. O Antropoceno cumpre a sua missão até revelar os seus limites. Lévi-Strauss diz mesmo que já começamos uma Entropologia e que a Antropologia se tornou o estudo da extinção ("Tristes Trópicos"). Uma conjugação de fins-de-caminho barra-nos o horizonte  como um Everest conceptual. O fim do trabalho já  é mais um pesadelo do que uma utopia. O fim da família é um cavalo de batalha populista, espezinhando a concórdia das nações. Os muros voltam a erguer-se e as línguas a dividir com o fim ou a suspensão do global. 

Mas salva-se o progresso. Estuda-se a etiologia de doenças raras  e saúda-se como provável efeito colateral o aumento da longevidade. Um dia, talvez, não tenhamos de nos preocupar com o superpovoamento  e o sistema de pensões ou a sustentabilidade ambiental. 

Ao mesmo tempo que a marcha das mulheres percorre a alameda das Antas, os talibãs impõem o regresso à burka na televisão afegã. A  nível mundial, grassam a guerra, a fome, a pobreza e o obscurantismo, doença  que normalmente as acompanha - como sempre, ao longo da história, a loucura  isolou, homens e mulheres, duma realidade insuportável. O que é certo é que a nível "geo-sexual", se assim podemos dizer, os talibãs e a sujeição da mulher, tal como a política dos republicanos nos USA e dos  populistas do resto do mundo, estão do lado errado da luta pela sobrevivência, ao deixarem sem controlo o "órgão sexual" da humanidade. De resto, os tiranos  são o que sempre foram, e não têm menos contra eles, como a restante humanidade, o fim do planeta "amigável" (visto que como deserto lunar ou nuvem joviana a terra existirá indefinidamente, pelo menos para a nossa medida). Nem podemos dizer como Du Fu,  o poeta chinês do século VIII: "o Estado foi destruído, mas os rios e os lagos permanecem". 

Se, por milagre (divino ou tecnológico) estas pragas desaparecessem e quiséssemos estar à altura das nossas crenças ou valores, o ambiente teria não o impacto de uma China que já é campeã mundial da poluição, mas de vários Dragões, com Xi ou sem, abreviando drasticamente a vida do planeta amigável.

Assim, o que os Gregos inventaram  como a Necessidade (Anankê), acima dos homens e dos deuses, resulta não ter tido ainda melhor tradução para a verdadeira situação humana. "C'est la vie!" ou "É a vida!" dizem quase o mesmo. Tudo e nada.




C I N E M A


"PERANTE O TEU ROSTO"
Sang-soo Hong, 2021



Uma veio da América, a outra vive em Seul. Duas irmãs encontram-se no apartamento duma e falam de coisas banais, tal como ir tomar café a um sítio esplêndido, com um rio verde a correr ao fundo. Sangok, a americana, que foi actriz há 30 anos, almoça com Jaewon, um realizador saudoso de algumas cenas desse tempo. Propõe-lhe fazer, agora, um novo filme e Sangsok vê-se obrigada a confessar o seu segredo: tem seis meses de vida. Jaewon fica destroçado. Fumam, bebem, esperam que a chuva passe. Então, Jaewon fala numa curta-metragem, que podiam filmar num dia e montar no computador. Sangok, divertida, pergunta-lhe se ele queria dormir com ela. Que sim.

Mais tarde, em casa da irmã, acorda com uma mensagem no telemóvel. Jaewon desculpa-se com o álcool: a ideia da curta-metragem nunca iria adiante. Simplesmente não podia ser. Sangsok abandona-se a um riso irreprimível.

Ela que tinha encontrado o "paraíso" no momento que passa  e na ausência temporária da dor, que aprendera a descobrir a beleza por detrás do rosto das pessoas, não pensara que a morte devesse impedir um capricho cinéfilo. Era apenas o presente.

A última imagem mostra-a junto à cama do sobrinho adormecido, como uma sombra vigilante. A sua vida está toda ali.

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